Capítulo 16

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A luz do Sol ofusca minha visão por alguns segundos. Viro o rosto para o lado e percebo que estou deitada em um gramado verde, levemente úmido por conta do orvalho. Passo a ponta de meus dedos na grama, e me surpreendo ao conseguir sentir a textura das folhinhas. "Era só o que me faltava..."

Recuso-me a me mover ou sair daqui. "Vou esperar acordar, é isso! Vamos, Clarice! Acorda! Acorda! Acordaaaaaaaaa!".

Suspiro e volto a olhar para o céu azul e para as nuvens fofas e brancas, flutuando vagarosamente. Rolo para um lado e para o outro. "Acorda, menina!". O mundo vai girando e girando... até que as patas de um cachorro com pelos dourados, e um par de pernas gordinhas com meias ¾ e sapatos marrons, aparecem em meu campo de visão.

Sento-me depressa. Uma Lina de uniforme escolar e Gumball me observam. O cachorro pula em cima de mim, abanando a cauda e parecendo feliz com a minha presença. Suas lambidas me fazem cócegas.

- Sentiu minha falta, bebê? – digo, abraçando o animal e acariciando seus pelos – sentiu?

- Gumball, já chega – Lina diz baixinho, tentando abraçar o cachorro e puxá-lo para trás – você está deixando ela toda babada!

Levanto-me sem graça e passo as mãos pela minha roupa para tirar algumas folhas que talvez tenham ficado presas, mas, por incrível que pareça, estou totalmente limpa: sem folhas, lama ou baba de cachorro. "Pera aí...". Olho para meu corpo, pés, braços. Estou vestindo um blazer e saia azul-marinho com abotoaduras cor de cobre, meias brancas ¾ e sapato social marrom.

Minha personagem e eu ficamos frente-a-frente, estranhamente desconfortáveis. Encaro-a, bastante confusa.

- Por quê que eu estou usando uniforme? – deixo essa pergunta escapar – eu não devia estar de pijama?

- Não sei... – Lina responde meio relutante.

- Ah, tudo bem... Acho que isso não é o mais importante – faço carinho em Gumball, cuja calda não para de abanar de felicidade. No fundo, me sinto triste. Parece que só ele queria me ver – se quiser, pode entrar em casa, vou embora assim que eu acordar – dou de ombros – Pelo menos foi o que aconteceu nas últimas vezes.

- Não, por favor, não vai! – Lina me pede, quase implorando – fui eu quem te chamei aqui.

- É?

Me surpreendo. Minha personagem crispa os lados, acanhada.

- Eu precisava falar com você... Por isso te chamei. Achei qu-

Lina se cala quando duas crianças passam correndo pela rua, brincando de pega-pega. Ela olha cautelosa para os lados, como se esperasse alguém.

- Melhor entrarmos – minha personagem me guia até a porta, com o golden retriever em seu encalço – Bernardo não vai chegar tão cedo. Temos que aproveitar isso.

Paro na soleira da porta.

- Eu posso mesmo? – estico meu braço, esperando a tocar uma barreira invisível.

- Claro que pode, esse mundo é seu – ela responde e me encara curiosa, como se tivesse encontrado uma pessoa que acredita que a Terra é plana – você sempre pôde entrar.

- Por que eu não consegui entrar da última vez?

- Acredito que seja porque você não estava realmente aqui – ela pega a minha mão e me traz para dentro de casa – faz bastante tempo que você não vinha.

Desvio o olhar quando adentramos na casa. Tiro meus sapatos marrons e os deixo na prateleira perto da entrada. Lina me oferece um par de pantufas verdes e felpudas. Calço-as e sinto sua maciez, são quentinhas e confortáveis, como se abraçassem meus pés.

Clarice, que não é, LispectorWhere stories live. Discover now