A luz do Sol ofusca minha visão por alguns segundos. Viro o rosto para o lado e percebo que estou deitada em um gramado verde, levemente úmido por conta do orvalho. Passo a ponta de meus dedos na grama, e me surpreendo ao conseguir sentir a textura das folhinhas. "Era só o que me faltava..."
Recuso-me a me mover ou sair daqui. "Vou esperar acordar, é isso! Vamos, Clarice! Acorda! Acorda! Acordaaaaaaaaa!".
Suspiro e volto a olhar para o céu azul e para as nuvens fofas e brancas, flutuando vagarosamente. Rolo para um lado e para o outro. "Acorda, menina!". O mundo vai girando e girando... até que as patas de um cachorro com pelos dourados, e um par de pernas gordinhas com meias ¾ e sapatos marrons, aparecem em meu campo de visão.
Sento-me depressa. Uma Lina de uniforme escolar e Gumball me observam. O cachorro pula em cima de mim, abanando a cauda e parecendo feliz com a minha presença. Suas lambidas me fazem cócegas.
- Sentiu minha falta, bebê? – digo, abraçando o animal e acariciando seus pelos – sentiu?
- Gumball, já chega – Lina diz baixinho, tentando abraçar o cachorro e puxá-lo para trás – você está deixando ela toda babada!
Levanto-me sem graça e passo as mãos pela minha roupa para tirar algumas folhas que talvez tenham ficado presas, mas, por incrível que pareça, estou totalmente limpa: sem folhas, lama ou baba de cachorro. "Pera aí...". Olho para meu corpo, pés, braços. Estou vestindo um blazer e saia azul-marinho com abotoaduras cor de cobre, meias brancas ¾ e sapato social marrom.
Minha personagem e eu ficamos frente-a-frente, estranhamente desconfortáveis. Encaro-a, bastante confusa.
- Por quê que eu estou usando uniforme? – deixo essa pergunta escapar – eu não devia estar de pijama?
- Não sei... – Lina responde meio relutante.
- Ah, tudo bem... Acho que isso não é o mais importante – faço carinho em Gumball, cuja calda não para de abanar de felicidade. No fundo, me sinto triste. Parece que só ele queria me ver – se quiser, pode entrar em casa, vou embora assim que eu acordar – dou de ombros – Pelo menos foi o que aconteceu nas últimas vezes.
- Não, por favor, não vai! – Lina me pede, quase implorando – fui eu quem te chamei aqui.
- É?
Me surpreendo. Minha personagem crispa os lados, acanhada.
- Eu precisava falar com você... Por isso te chamei. Achei qu-
Lina se cala quando duas crianças passam correndo pela rua, brincando de pega-pega. Ela olha cautelosa para os lados, como se esperasse alguém.
- Melhor entrarmos – minha personagem me guia até a porta, com o golden retriever em seu encalço – Bernardo não vai chegar tão cedo. Temos que aproveitar isso.
Paro na soleira da porta.
- Eu posso mesmo? – estico meu braço, esperando a tocar uma barreira invisível.
- Claro que pode, esse mundo é seu – ela responde e me encara curiosa, como se tivesse encontrado uma pessoa que acredita que a Terra é plana – você sempre pôde entrar.
- Por que eu não consegui entrar da última vez?
- Acredito que seja porque você não estava realmente aqui – ela pega a minha mão e me traz para dentro de casa – faz bastante tempo que você não vinha.
Desvio o olhar quando adentramos na casa. Tiro meus sapatos marrons e os deixo na prateleira perto da entrada. Lina me oferece um par de pantufas verdes e felpudas. Calço-as e sinto sua maciez, são quentinhas e confortáveis, como se abraçassem meus pés.
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Clarice, que não é, Lispector
RomanceClarice é uma universitária de personalidade excêntrica (palavra essa que, segundo ela, lembra russos com bigodes ao estilo Salvador Dalí). Sua vida deixa de ser comum quando conhece Arthur, um colega de classe que é idêntico a Bernardo, o personage...