Capítulo 19

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Uma planície desértica se estende ao meu redor. No céu azul, nenhuma nuvem, apenas o sol muito brilhante. O ar está quente e parado. Aqui não existe som. É uma solidão estranhamente reconfortante.

Um vestido de tecidos extremamente leves e brancos cobre meu corpo. Sinto o calor da areia em meus pés descalços.

Admiro a paisagem plana e sinto alegria. Uma alegria tão grande que é como se algo fizesse cócegas em meu coração. Decido correr em frente, rindo. Sinto como se eu estivesse livre. Livre da sensação de estar presa a um corpo físico, das expectativas minhas e das outras pessoas, até mesmo de pensar racionalmente. Apenas quero correr, o mais rápido e longe que eu puder.

Corro uma longa distância, sem ficar cansada ou sequer ofegante. A visão de uma árvore alta e ressequida me faz diminuir a velocidade. Algo parece reluzir na ponta de seus galhos. Mais de perto, percebo que são cachos de flores que parecem ser feitas de vidro. As pétalas são transparentes e tem veios de fios dourados. Me aproximo e colho uma delas, que exala um cheiro parecido com o de dama-da-noite. Inspiro seu aroma mais uma vez.

Um pavão albino de olhos cor de âmbar surge atrás de mim, abrindo sua bela cauda em leque. Ele curva seu longo pescoço, fazendo uma profunda reverência. Me curvo também, lhe imitando, e algo cai aos meus pés. Pego a rústica coroa de cristais de quartzo rutilado e a ponho em minha cabeça.

"Por favor, me acompanhe", algo me diz que isso é o que a bela ave quer.

Caminho ao lado do pavão. Conforme vamos andando, arbustos espaçados e grandes pedras olho-de-tigre passam a compor o cenário. Continuamos andando e andando e andando. Não sinto medo algum de estar perdida.

Depois de algum tempo, o pássaro voa alguns metros e pousa no batente de uma porta no meio do nada. Na verdade, é apenas o batente, sem porta. Uma moldura para a paisagem à frente.

Contorno o portal, curiosa.

- Isso vai pra outro mundo, né? – pergunto.

O animal pisca os olhos como se me entendesse. "Sim".

- Espero te ver de novo – digo.

O pavão mostra suas penas de novo. "Até breve".

Atravesso o portal e outro mundo surge.

No céu, a aurora boreal dança, suas cores transitando entre tons de rosa, laranja, verde e roxo. As milhares de estrelas salpicam o manto noturno. Estou em outro deserto. No entanto, este é rodeado de planaltos arenosos e cortado por uma estrada asfaltada que não tem fim.

Uma brisa fresca sopra, e me sinto totalmente em paz. Ando pela estrada, observando as montanhas banhadas nas luzes da aurora, seus relevos, as pedras que se desprenderam de sua superfície e se acumularam no chão. A areia deste mundo é fina e tem cor de carvão.

Noto a silhueta de um enorme lobo sentado à beira da estrada.

- Nox? – eu o chamo, me sentindo nostálgica.

As orelhas do lobo preto se mexem e ele vira a cabeça em minha direção, me observando com serenos olhos cor de ametista. Corro em sua direção e abraço seu pescoço, afundo meu rosto em seu pelo denso.

- Senti sua falta – falo baixinho, fechando os olhos.

"Também senti sua falta, minha Clarice", diz uma voz serena, como se representasse essa paisagem em som.

Me sento ao seu lado e apoio minha cabeça em seu ombro.

- Finalmente voltei – digo enfim – peço perdão por fazer você me esperar.

"Não precisa se desculpar, não senti o tempo passar"

- Mas... faz uns 7 anos que não nos vemos...

"Eu não existo oficialmente, então, quando você for embora de novo, vou adormecer e acordar apenas quando você voltar. Não é ruim"

- Hm...

Desenho espirais na areia, desconfortável por causa do silêncio.

- Como você não existe se você está aqui?

"Se não sou escrito, eu não existo", Nox pisca lentamente.

- Então... Você quer que eu escreva sua história?

"No momento, não", então faz uma pausa, "algo me diz que ainda não é a hora certa para eu existir".

- Ah, sim... Tenho que terminar a história da Lina antes.

"Sei que minha história será escrita e sei que vou ficar feliz por vivê-la"

Abraço meus joelhos e confesso, relutante.

- Lina e Bernardo estão chateados comigo. É mais o Bernardo. Lina está feliz porque eu voltei. Estou com medo de escrever.

O lobo pisca novamente.

"Por quê?"

Olho para o rosto de Nox, buscando uma resposta. O animal me encara de volta.

- Tenho medo de ficar ruim. De não gostar de como está indo, de me embaralhar nos acontecimentos do livro e ter outro bloqueio criativo, de quem ler achar ruim.

"Então apague e comece de novo", ele me tranquiliza, "o que é escrito só existe e acontece depois que você se escreve e se sente satisfeita com resultado. Por isso, não tenha medo de errar, a criação só é concretizada se for escrita e se você quiser que ela aconteça, minha Clarice".

- Entendi – sorrio – obrigada por me ouvir.

"Se você teve criatividade de pensar em nós e nos criar com tanto carinho, você consegue escrever o que você quiser".

- Você sabe o que acontece depois que sua história termina?

"Sim"

- Será que eu consigo escrever um bom final? Sempre começo as coisas, mas nem sempre consigo terminá-las.

"Sim, eu acredito em você", Nox pisca, "Acredite em você também".

Aos poucos, a aurora vai se apagando e Nox diz:

"Está chegando a hora de nos despedirmos, minha Clarice"

Eu o abraço forte e peço para que ele não se vá.

"Você pode me visitar sempre que estiver solitária ou triste, da mesmo forma que você vinha me ver quando estava na escola. Vou estar aqui, porque faço parte de você".

Clarice, que não é, LispectorWhere stories live. Discover now