2 - NINGUÉM IA MUITO COM A MINHA CARA E OLHA QUE ELA ERA LINDA

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Terráqueo, eu podia começar dizendo como o rei dos kyoches jogou uma bomba no seu povo, como um rio desapareceu da noite para o dia ou como um piscar de olhos pode causar um terremoto, mas eu vou pelo começo. 

Meu nome é Iogo. A melhor parte da minha vida é ser rico, claro. Mas, tirando isso, minha vida era um caos. Eu vivia no planeta Kyoche, mas ele não era tão gigantesco ou convidativo quanto o seu. Grande parte dele não morava ninguém, tirando a minha cidade. Além do meu planeta, havia três planetas a nossa vizinhança. Acho que isso é novidade pra você. E, acredite, os quatro estavam conectados por um imenso cordão de águas, como miçangas de um colar. As águas agitadas ondulavam pelo espaço até desaguar de um planeta para o outro. Aos poucos, você vai entender melhor o nosso mundo. Só que tudo começou na minha terra, Kyoche, no dia que eu conheci o anjo das águas coloridas. 

Como era o rei de lá? Ah, hora de falar mal do papai. Meu pai parecia um macaco que pula de galho em galho. Ele viajava muito e nunca deve ter trocado nem uma fralda minha. Ah, que menininho carente. Mas é verdade, eu juro. Aliás, essa história começa justamente quando meu pai se cansou de conviver comigo no castelo e decidiu me enfiar num campo de treinamento para jovens kyoches. 

Minha mãe? Bem, eu nunca cheguei a conhecê-la. Tudo que eu sei é que ela morreu pouco depois de eu nascer. Meu pai e eu não conversamos sobre isso. Aliás, a gente não conversa sobre nada. Diálogo é coisa de outro planeta e, sim, tem uma treta feia entre nós. 

Ah, eu tenho que dizer como eu sou? Olha, não se assusta. Meus cabelos são brancos, branquinhos. Calma, não é velhice precoce. É só uma doença que eu herdei do meu avô. Sim, as pessoas caçoam de mim por isso, mas, tudo bem, eu respiro fundo e a vontade de esfregar a cara do infeliz na pedra lascada passa. 

Então, a história começou quando o meu pai estava viajando e me enviou para o inferno, quer dizer, para o campo de treinamento. Esse campo era um estádio oval rodeado por arquibancadas de madeira. Mas o problema nem era a construção estar caindo aos pedaços. Isso dava pra superar. A grande questão era o motivo do nosso treinamento. Não era só pra poder defender o país. 

Os quatro planetas estavam a um passo de entrar em guerra. Eu não sabia exatamente o porquê, afinal os adultos não compartilhavam essas coisas com as crianças. Só que o fato é que as quatro raças sempre se odiaram e acho que agora estão arrumando a melhor desculpa para cair no tapa oficialmente. 

Ah, como eu estava dizendo, estar no campo era um inferno pra mim. Lá ninguém ia com a minha cara, e eu achava difícil isso, porque ela era linda. Mas como assim? Você é o príncipe. Então, acho que esse era o problema. Os aprendizes achavam que eu devia voltar para o castelo. Na cabeça deles, ser príncipe se resumia em comer caviar e deitar na minha piscina de notas de cem. Eu até queria ter uma piscina assim, mas meu pai não deixou. 

Bem, apesar de tudo, eu tinha um amigo. O nome dele era Indio. Ele também vivia no castelo antigamente. O menino era filho de um dos conselheiros do rei. Nossa situação era meio parecida. Nós dois odiávamos o campo. E não era só porque ele era mal frequentado. 

A rotina naquele lugar era tão dura que depois do aquecimento ninguém se aguentava em pé.E, pra piorar, o treino de hoje ia ser tentar voar em pássaros de guerra gigantes, os ágalos. Me dava tontura só subir escadas, que dirá voar nas nuvens. Por isso, Indio e eu bolamos um plano infalível. A gente ia se esconder do treinador logo depois do aquecimento. Quando o professor berrou com o apito, os aprendizes foram se atropelando pra beber água no meio do campo. Eles seguiram para um lado, mas Indio e eu tínhamos outros planos. 

A gente correu até chegar na arquibancada. Eu já cheguei desabando no chão. Já Indio apoiou o braço na madeira e enxugou a testa. 

— Cara, eu não vou montar naquilo nem obrigado. 

— Nem eu. Pega até mal um príncipe se sujar naquela coisa. 

— Ah, Iogo, para com isso. — Indio revirou os olhos. 

— Lá vem você com esse papo de príncipe. Depois reclama que o pessoal te odeia. 

— Que isso, Indio — meu olho inflou. — Vai ficar do lado deles agora? 

— Eu não tô do lado de ninguém, tô falando a verdade. Eu... — foi aí que Indio estremeceu. — Ah, não, Iogo. Nossa fuga foi por água abaixo. Olha só quem tá ali. 

Antes que eu pudesse me mexer, uma sombra enorme cobriu a gente. Eu olhei pra cima e um pássaro gigante estava rodopiando acima do campo. E não era só um. Um bando de ágalos estava voando pra lá e pra cá e dava pra escutar um monte de gritos dos aprendizes. Eu não sabia se era de animação ou de socorro. Eu só sabia que o treino estava a todo vapor. 

 — Ei, vocês aí! — uma voz veio do alto. — Podem voltar pro treinamento. 

Eu reconheci a voz. Era o treinador, Amundos. Ele estava montado em um ágalo com tanta habilidade que dava inveja. 

— Vamos, Iogo. — Indio me puxou. — Se não vai sobrar pra gente. 

Eu joguei praga no treinador e, então, cinco minutos depois, a gente estava na frente dele. 

— Por que vocês fugiram, hein? — Amundos cruzou os braços. — Vou anotar isso na ficha de vocês. 

— Eu não fiz nada, eu juro. 

Indio estava mais culpado do que quem solta pum no elevador. Como eu era opríncipe, era só eu ficar calado com cara de cachorrinho fofo que todos se curvavam aos meus pés. Não funcionou. 

— Bem, gente, como castigo, vocês vão treinar até depois da hora. Agora, vamos às dicas. É muito simples. Vocês vão montar no ágalo e se comunicar com ele. 

O treinador tirou seus óculos de aviador e acariciou o pássaro ao lado dele. 

— Comunicar? — eu reagi. — Como assim? 

— Vocês apenas agirão como kyoches.  — O treinador sorriu e, nesse momento, algo pior do que montar num ágalo aconteceu. 

De repente, o pássaro do treinador deu um pio muito agudo. Isso fez a gente pôr as mãos no ouvido. Amundos se virou, estranhando o comportamento do bicho. Ele tentou conter o pássaro, batendo um papo com ele. Eu achava que isso não ia funcionar. Ele não entendia nem palavrões na língua oceânica. Só que não parou por aí.

O pássaro levantou o pé e atirou suas garras pra cima de nós. O treinador tentou pará-lo, mas ele foi mais rápido. No susto, eu e Indio quase caímos para trás. 

— Ei, treinador, o que é isso? 

Eu acompanhei a trajetória do ataque e aquelas unhas atingiram a grama aos nossos pés como uma flecha em chamas. Eu queria fugir, mas estava paralisado. Eu encarava aquele pássaro e o medo parecia que colava meus pés ao chão. 

Aquelas aves eram muito estranhas. O bico era torto e listrado. Suas penas eram rajadas de laranja e vermelho, como o fogo. E seus cílios eram tão grandes que dava pra varrer uma cidade inteira em questão de segundos. O mais estranho era que aquele ágalo também estava me encarando, como se, de alguma maneira, me reconhecesse. 

Foi então que o ágalo tomou impulso e deixou uma nuvem de poeira no chão. O treinador estava entre ele e a gente, mas o pássaro driblou ele com a agilidade de um jogador de futebol. Ele vinha que nem míssil em nossa direção. Quando a gente percebeu isso, salve-se quem puder, nos dispersamos pelos quatro cantos do campo. 

A perseguição começou. 

Anjo das ÁguasOnde histórias criam vida. Descubra agora