11 - SOCORRO, TEM UM DEMÔNIO LÁ FORA

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Após a reunião com o treinador, imagina cem pessoas se acotovelando pra voltar às barracas. Então, foi isso que aconteceu. No meio daquela muvuca, eu até perdi Raphael de vista. Aquilo não era muito difícil, porque eu só conseguia ver umas bolinhas douradas e tinha que torcer pra ser ele. E o anjo sumia muito, até você ia se irritar. Uma vez, eu podia jurar que estava falando com ele, quando eram só vaga-lumes dando um rolê por aí. 

Quando eu fui pensar em procurar o Rapha, Amundos falou que não era hora deficar perambulando por aí, que amanhã tinha treino e tal. Então, eu fui pro meu aconchego e nem sabia como Raphael ia me achar num mar de barracas verdes espalhadas pelo gramado do estádio. Indio falou pra eu ficar acordado a noite toda esperando. Eu nada. Amanhã eu ia ter que acordar cedo pra recomeçar aquela maluquice toda de treinamento. 

Só que, depois da palestra de Amundos, era tanta informação nova que o sono se escondeu atrás delas. Peguei uma lanterna jogada na barraca e deixei a luz clarear minhas ideias. Com esse discurso, Amundos nos fez perceber que estávamos tão vidrados naguerra em si que esquecemos de um detalhe: a paz. 

Será mesmo que os oyoches eram os verdadeiros inimigos? E por que eles seriam traíras? Será que eles queriam retomar o controle do meu planeta? Será que era por isso que existe uma tensão crescente entre os países? Será que depois da guerra, havia a possibilidade de união entre os oceanos? Se fosse assim, agora ficava mais claro quem era o inimigo e porque devíamos nos defender. Agora alguma coisa fazia sentido. 

Foi aí que eu lembrei que tinha que dormir. Se eu chegasse atrasado de novo, ia levar outra advertência. Então eu achei um outro objeto perto dos sacos de dormir e tive uma ideia. Era um instrumento musical bem parecido com o cavaquinho que existe por aí, terráqueo, só que tinha o formato de uma estrela e a cor era de madeira envernizada. Então, eu peguei ele e repousei no meu colo. Riscando as cordas com os dedos, eu tentei tocar para mim mesmo como uma canção de ninar. Eu gostava de fazer aquilo, sabe, como um hobby secreto. Ninguém ali sabia. Até que...

A cabeça de Raphael apareceu na barraca e eu pulei de susto.

— Cara, faz isso comigo não. Parece uma assombração.

O anjo me ignorou e pôs o dedo indicador sobre a boca.

— Fica quieto! — ele batia os dentes e olhava ao redor como se a barraca fosse engolir ele. 

— Eu tô com medo do que Amundos disse. A superfície é um lugar muito estranho. Tem gente aqui que é do mal. Eu quero voltar pro rio.

Eu levantei uma sobrancelha.

— Do mal? Qual é, Raphael? O campo é longe, mas também não é o inferno. E, relaxa, ninguém vai atacar a gente. Se atacar, você pega um galho e bota eles pra correr que nem você fez comigo lá no rio.

— Não é isso, Iogo — o anjo ficou em dúvida. — Acho que você não entendeu. Eu achei o treinador muito suspeito. Como ele sabe que um ataque está próximo? Sem contar que ele tem cara de demônio narigudo. 

Eu também fiquei meio grilado com aquilo. Amundos não revelou de onde veio essa informação e ele soltou um "traíras" que me deixou com a pulga atrás da orelha. Mas ele era um guerreiro e claro que sabia de coisas que a gente não sabia. E, quer saber, eu não queria falar daquilo agora porque a paciência já tinha acabado no estoque.

— Relaxa, Raphael. Sei que você tá acostumado a viver num paraíso de bolhas, mas seja bem-vindo ao planeta Kyoche. Regras: "Não há regras". Além disso, ninguém vai com a cara do Amundos de primeira. Aliás, nem de segunda. Mas, fica tranquilo. Uma hora, vai. Esse é o jeito de ele dizer que nos ama. E, quanto aos mistérios, vai se acostumando também.

— Mas...

— Ah, vai dormir, cara. — eu revirei a mala até achar outro saco de dormir e taquei na cara dele. Só assim ele calou a boca.

— Dorme logo aí, senão vão escutar a gente.

Ele ficou com a cara emburrada, tipo "socorro, tem um demonio lá fora", mas o sono falou mais alto. Raphael se enfiou no saco de dormir e, em questão de segundos, já estava roncando.

Eu apaguei a lanterna, os olhos, o cérebro e fui que fui também.

Anjo das ÁguasWhere stories live. Discover now