14 - A SOLIDÃO É UM CAROÇO DE MANGA ENTALADO NA GARGANTA

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Depois de empurrar o chão com as mãos, eu consegui me pôr de pé. Só que, quando olhei pra Patagona, a vontade era de ficar quietinho ali mesmo e me confortar coma ideia de que a vida não pode te derrubar se você já está no chão. 

No entanto, eu não podia me entregar assim de bandeja. O que eu podia fazer para ganhar? Poxa, cadê o anjo pra puxar o pé das pessoas quando a gente precisa dele? Eu até queria usar minhas habilidades, mas, sabe, eu não queria humilhar ninguém. Mentira. Tomar uma mistura de jiló com abacaxi até podia fortalecer meu corpo, mas aquilo demorava a fazer efeito. Convocar as formigas pote-de-mel poderia dar certo, só que não daria pra atacar a longa distância. As chances pareciam estar do lado de Patagona. Além disso, nunca vi a garota daquele jeito. Ela estava com muita raiva. Ela devia estar lembrando tudo de ruim que eu fiz contra ela. Talvez agora eu fosse o alvo da sua vingança e ela estivesse medindo qual lugar era melhor para lançar a flecha.

Só que, em vez de lançar uma flecha, Patagona fez o que não estava nos planos. A garota começou a mover o corpo, como se fizesse a dança do ventre. Eu estranhei ela, mas aquilo fazia sentido. Alguns bichos eram atraídos pelas perturbações no ar que a gente realizava durante a dança. A pergunta que restava era qual, mas a resposta não demorou muito. Segundos depois, Patagona foi rodeada por borboletas roxas que dançavam segundo o que ela fazia. Me pus na defensiva. Ela só queria se mostrar pros outros aprendizes. E, o pior, aquele showzinho funcionou.

Foi só eu olhar de relance para a arquibancada que eu tive a visão do inferno. Os aprendizes acenavam, sopravam apitos e gritavam o nome de Patagona. Ninguém estava torcendo por mim. Meus olhos procuraram pelo Indio, mas ele, literalmente, não estava nem ali. E, por mais que eu procurasse, Raphael também era carta fora do baralho. 

Foi aí que meu rosto esquentou e meus olhos aguaram. A solidão era um caroço de manga entalado na garganta. O pior é que nem tempo de engolir ele eu tive. Naquele momento, Patagona apontou o dedo pra mim e foi a ordem. As borboletas vieram como um redemoinho em minha direção. Tentei bolar um plano, mas a garota foi mais inteligente. Antes de me encostarem, as bichinhas explodiram fumaças roxas, que separaram eu e ela como uma barreira.

Mergulhei para o lado pra não perder a inimiga de vista, mas ela surgiu de repente, atravessando a fumaça como se tivesse se teletransportado e eu nem tive tempo de pensar. As garotas na arquibancada deliravam: "Vai, Pata. Acaba com esse garoto!". E ela fez exatamente isso. Patagona me deu um soco no estômago que me arremessou longe. Eu fiquei desmaiado na grama como um saco de batatas.

— Pata, isso aí, faz ele comer grama!

Nessa hora, eu pensei: "Não vou dar esse gostinho a ela, ela não pode me fazer comer grama se eu comer por livre e espontânea vontade". Mas, foi aí que eu precisei levantar, porque a estratégia de Patagona era de deixar a batalha às cegas.

Havia uma nuvem densa e escura ao meu redor. Isso porque as borboletas continuavam a explodir em vários cantos do estádio. Por que Patagona estava fazendo aquilo? Como eu ia atacar ela, sem poder ver? Foi então que, quando eu menos esperava, alguém emergiu daquela névoa e não foi minha inimiga.

Eu fiz um xis com os braços pensando em me defender, mas então tive uma surpresa. Raphael, do nada, vinha voando em minha direção. O anjo trazia canudos de bambu entre os seus dentes. Não entendi o porquê daquilo. Com certeza, ele devia ter pego aquilo no lixão do estádio. Mas ele tinha sumido. Onde ele tinha se metido naquela hora? Não tive tempo pra pensar naquilo, porque foi aí que Raphael pairou acima de mim, me deu os canudos e esclareceu a nuvem negra na minha cabeça.

— Iogo, eu vou te ajudar. — o anjo disse. — Enterra os canudos no chão. Quando eu disser já, você tem que disparar contra Patagona.

— Mas...

Eu mesmo parei a frase no meio. Não tinha tempo para discutir também. Eu precisava confiar nele. Na hora, eu pensei no que Indio disse sobre não usar os poderes do anjo em benefício próprio. Por um instante, eu pensei em recusar, mas, se Pata já tinha quebrado uma regra me atacando fora do campo, qual era o problema de quebrar outra?

Fiz o que Raphael disse. Cravei os canudos no chão. Agora eu tinha alguém do meu lado. Eu não estava mais só. Aquilo me deu gás. Raphael era a torcida de uma pessoa só que eu precisava. Assim que a fumaça se dissipou, eu vi que Pata ainda dava beijinhos pra torcida, achando que eu já estivesse fora da disputa.

Quando a menina me viu, ela rugiu como se estivessem cortando o barato dela. Pata devia ter estranhado os canudos grudados na grama, achando que eu ia sugar água de lá. Mas o que aconteceu foi justamente o contrário.

Eu olhei para Raphael pairando acima de mim. O anjo mexeu no ar como se preparasse uma massa de pizza e então, aconteceu. Três jatos de água irromperam dos canudos e avançaram contra Pata, como se escapassem de um hidrante. 

Patagona tentou desviar, mas Raphael fez os jatos a seguirem até se enroscarem em torno dela. A corda se enrolou na menina e apertou ela, como se fosse uma corda de palha mesmo. A garota bufou.

— Me solta, ora seu... — mas era a minha vez de brilhar. 

— Agora, Iogo!

Foi aí que eu avancei contra Patagona na cara e na coragem, enquanto a menina se debatia nos laços d'água. Eu corri tão rápido quanto eu pude. A torcida prendeu a respiração. Amundos deixou a pipoca cair. E, então, o impossível aconteceu.

Patagona ficou vermelha de tanto fazer força e nem a corda d'água aguentou, explodindo como um balão. Meu coração gelou e, quando eu estava a meio metro dela, a líder correu ao meu encontro.

— Iogo! — gritou Raphael.

Eu ergui meu punho. Ela cerrou os dentes. 

E...BOOM! 

Eu e Pata nos chocamos e um bolo de fumaça ondulou do embate. Ela segurava meus dois punhos e eu tentava soltar. Um raio reluziu entre nossos olhos e o pior é que agora eu estava imobilizado. A líder sorriu, levantando seu joelho e eu engoli em seco. Seria o último golpe. O golpe fatal, mas...

Patagona respirou fundo e extravasou.

— Já chega! Eu desisto!

Anjo das ÁguasWhere stories live. Discover now