13 - AMUNDOS FAZ EU PAGAR MEUS PECADOS COM JUROS

8 1 0
                                    

A partir daquela conversa com Raphael, eu fiquei pensando: será que tinha alguma possibilidade daquele kyoche especial ser eu? Mas, até agora, eu fui a pessoa que o anjo mais observou e nada. Eu só não queria que fosse Patagona. Ela ia ficar se gabando de ser especial. Se bem que eu não sabia o que era ser especial e nem por que o pai de Raphael precisava dele. Eu até perguntei para o Raphael, mas ele também não sabia daquilo. Aliás, Raphael ficou me cobrando a brincadeira, mas eu decidi escutar o Indio, claro, porque senão eu mesmo poderia me dar mal se descobrissem a existência do anjo.

A propósito, quando Indio percebeu que eu voltei atrás com a ideia de usar o anjo como uma assombração, ele estendeu a mão e cobrou agradecimento pelo conselho que ele tinha me dado. Era só o que me faltava. Eu dei as costas pra ele e resolvi focar na minha amizade com Raphael. Afinal, eu tinha prometido ajudar ele a cumprir a missão. Só que, pra mim, todos os kyoches aqui eram a mesma bosta.

Conforme o tempo foi passando, eu comecei a pensar que Raphael ia ter que ficar um bom tempo na superfície até conseguir achar alguma coisa. A não ser que ele estivesse procurando do jeito errado. Fosse o que fosse, ele corria contra o tempo. No final de oito meses de treinamento, haveria uma pausa no treinamento e nós iríamos ficar um tempo em casa. Com isso, ia ser mais difícil Raphael nos observar. O anjo não queria que aquele dia chegasse, mas, cá entre nós, eu rezava pra estar logo livre daquele inferno, ops, campo de treinamento.

Então, querendo ou não, chegou o último dia de aula. 

Eu estava louco para chegar logo ao castelo, mas antes precisei sofrer uma humilhação pública. Amundos fez eu pagar meus pecados com juros e correção monetária. Você não sabe o que estou falando, mas vou clarear suas ideias. 

Naquele fatídico dia, as coisas já começaram mal logo de manhã cedo. Pra você ter uma noção, eu acordei todo molhado e, assim que abri os olhos, percebi que não tinha sido eu que mijei na cama. 

— Raphael, olha só o que você fez — as coisas encharcadas flutuavam dentro da barraca.

— Desculpa, às vezes eu solto água quando eu me assusto.

— Você devia ter dito esses detalhes antes de eu te chamar pra dormir aqui. Você destruiu minhas coisas.

— Ah, Iogo, pega leve, vai, essa noite eu tive um pesadelo horrível. 

O Amundos estava me perseguindo no rio Pardo com cara de demônio narigudo.

— De novo com essa desconfiança do treinador? — meu rosto esquentou. 

— Não basta o que você fez ontem, Raphael. O Indio até agora tá com raiva de mim por sua causa!

Os olhos de Raphael fizeram uma retrospectiva do dia anterior e nada que tinha acontecido era motivo de orgulho para ele. Você não vai acreditar. Apesar de tudo o que aconteceu depois que eu conheci ele, Raphael ainda estava desconfiado de Amundos. E, com a falta de educação do treinador, aquilo só piorou. 

Ontem, a aula tinha sido na cozinha. Era pra aprender como os sabores diferentes influenciam o corpo dos kyoches. A gente fez várias misturas de legumes, frutas e folhas e colocava elas em garrafinhas minúsculas para usar em algum conflito para recuperar as forças ou para modificar o tom de voz. Mas se eu soubesse o que Raphael ia fazer, não tinha deixado ele acompanhar o treino. No meio da explicação, Amundos deu um fora em um dos alunos e Raphael não aguentou de raiva. O anjo pegou um tomate em cima da mesa e jogou na cara dele. Sorte que ninguém viu. Mas alguém tinha que levar a culpa. Eu juro que eu ia dizer que era o culpado pro treinador nem desconfiar do nosso segredo. Mas, como a culpa era minha, eu botei onde eu queria.

No caso, no Indio. 

Indio quase caiu pra trás quando eu apontei o dedo na cara dele. Ele deve ter pensado em cometer um homicídio triplamente qualificado, mas eu falei que alguém tinha que se sacrificar pelo bem de todos e nada mais justo do que ser ele. Conclusão: Indio já estava com raiva de mim porque eu queria usar o anjo para fins clandestinos, agora então queria ver a minha morte. E tudo por causa do ranço sem pé nem cabeça do Raphael pelo Amundos. Que coisa de doido. É por essas e outras que eu estava tão feliz daquele ser o último dia no campo de treinamento. Aleluia. Depois de oito meses de tortura física e psicológica, enfim eu ia estar livre. Sem aquela perturbação toda por um mês era quase um presente divino. 

Anjo das ÁguasWhere stories live. Discover now