18 - NÃO CUSTA NADA DAR UMA LIMPADINHA INOCENTE NO MEU SAPATO COM A LÍNGUA

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 — Então, Hared, fale um pouco sobre a viagem. O que a vossa alteza fez após botar o primeiro pé no planeta trino?

— Botei o segundo, ué, kkkkk. Que pergunta idiota. Tá, parei. Desculpa, sou rei, tenho que manter a pose. Vai, próxima.

— Diga-nos. As autoridades já descobriram o motivo do sequestro do príncipe trino pelos oyoches?

— Ainda não, mas tem uma teoria bastante forte que diz que levaram ele pra lác om o nobre objetivo de ensinar os oyoches a dançarem frevo no carnaval.

— O quê? Hared, o senhor está bem? Não estamos entendendo aonde o senhor quer chegar.

— Chegar, eu quero chegar na minha cama, mas, infelizmente, tenho que manter a pose de rei aqui.

— Tudo bem, vamos pra última parte. O senhor poderia, em poucas palavras, resumir o balanço da viagem?

— Então. A viagem foi de navio, cara. Balançou que é uma beleza. Vomitei verde. Cê tinha que ver. Aquele nojeira poluindo a natureza. Coisa de louco esse balanço, hein.

...

Então, pessoal, a coletiva de imprensa, infelizmente, não tava interessante assim. Estava um saco. Furado e sem alça, inclusive. Hared e os entrevistadores estavam sentados em sofás vermelhos no maior conforto no meio da sala batendo papo. E o resto das pessoas estava em pé, atrás de um cordão de isolamento nos cantos do cômodo. A sorte é que tinha uma mesa de café do lado que eu tava, porque senão eu não ia aguentar aquele tédio. Ia dar uma fugidinha. Aliás, tinha cada poste na minha frente que era difícil acompanhar a fofoca que meu pai tava contando. Sacanagem. Eu já tava pensando em acotovelar todo mundo e fazer a cara de cachorrinho fofo pra chegar lá na frente, mas quando eu ia fazer a primeira vítima, tive uma surpresa.

Indio apareceu do nada na minha frente.

— Indio, meu deus, que susto, que cê tá fazendo aqui?

— Mó tempão que eu não apareço aqui no castelo, né? — disse Indio. — Mas hoje foi por um bom motivo.

— Você também quer escutar a fofoca em primeira mão, né?

— Na verdade, foi eu que trouxe ele aqui. — disse um rapaz atrás de Indio. Ele era alto, moreno escuro, cabelo curtinho e usava barba rala. Eu conhecia ele de algum lugar, mas de onde era um mistério. Provavelmente, era um dos servos dos conselheiros do rei.

— Ah, que bom. Eu sou Iogo, o príncipe, obrigado por nos servir. Já pode se retirar dos aposentos que eu quero conversar com o Indio a sós.

— Eu vou retirar é a pele da tua cara se tu não falar direito comigo, seu pivete. Eu sou o irmão do Indio, Aspique Tinique, guerreiro do exército kyoche.

— Que isso, que abuso, isso é jeito de falar com o príncipe?

— Iogo, não vem com essa não. Esqueceu? Seu pai deu permissão da gente te tratar como você merece.

— Poxa, mas tão mal assim?

— Você tá se entregando, hein. Eu nunca vou ficar com essas frescuras com você. Pensa que eu não lembro? Nossa família precisou dar o fora do castelo por sua causa.

— Minha causa? Para de ser mentiroso, Aspique. 

Não foi bem assim, terráqueos. Em minha defesa, eu preciso contar a história pras coisas ficarem claras e você não pensar que eu sou o vilão da história. A verdade é que, como eu falei no começo, Indio é filho do conselheiro do rei, mas nem sempre foi assim.

Quando eu nasci, Indio e a família dele eram um bando de zé-ninguém na roça do planeta kyoche. Não sei porque, do nada, Hared chamou todos eles para virem morarno castelo e contratou o chefe da família pra ser seu conselheiro. Sei lá porque ele fez isso, já que o pai do Indio não sabia nem a diferença entre cheiro verde e coentro. 

O lance é que eu tinha sete anos quando me deparei com Indio no corredor do castelo e levei um baita susto com a feiura dele. Eu, pensando que Indio era um servo, pedi apenas para ele dar uma limpadinha inocente no meu sapato. 

Com a língua.

Aspique ficou uma fera quando viu e quis me dar uma surra. Desde então, ele não vai com a minha cara, apesar de ela ser linda. Eles não saíram do palácio por causa de mim. Eles que não se adaptaram a vida comendo caviar e preferiram voltar a comer sanduíches de ar e dormir no chão gelado. Indio super me perdoou por aquele incidente. É o irmão dele que fica ressuscitando meus vacilos do passado. 

Depois daquilo, eu nunca mais fiz nada de mal com ele, tirando quando eu tentei cortar a sobrancelha dele enquanto o garoto dormia. Mas, em minha defesa, aquele tapete em cima dos olhos de um indivíduo daria nervoso até em você, terráqueo.

— Não interessa se foi sua culpa ou não. A melhor parte de sair daqui foi não ter que topar com você nos corredores. Você continua o mesmo animal de sempre. Não sei como meu irmão te suporta.

— Aspique, isso já faz sete anos. Evolui, cara. Eu mudei.

— Isso eu tenho que concordar. Tu mudou à beça. Pra pior.

Foi aí que eu resolvi parar de dar murro em ponta de faca e falar com quem merecia um pouco de atenção.

— Indio, quer ir comigo pro meu quarto? Preciso falar contigo um negócio.

Indio foi na onda do irmão e quase me tirou do sério.

— Se for dizer obrigado por ter me ajudado, pode ser aqui mesmo.

— Não pensa que eu vou te agradecer por ter enviado o anjo pra me ajudar no duelo não, Indio. Não brinca com a sorte.

— Ah, eu já desisti disso. Se eu fosse esperar obrigado por cada ajuda que eu te dou, ia ficar de cabelo branco. Sem referências.

— Pesada essa piada, hein, Indio. Desnecessária. Não segue seu irmão não que ele tá perdido.

Indio apertou a mão do irmão.

— Eu posso ir lá, Aspique? Amanhã, você me leva pra casa.

Eu fui andando na frente porque senão ia mandar Aspique para um lugar desagradável.

— Se preocupa não, Indio. Pode ir, eu vou te ver daqui a pouco mesmo, Indio. Eu que tô responsável pela guarda de onde o Iogo dorme hoje. Não é meu trabalho preferido, mas o que o dinheiro não faz, né? Vai lá e vê se convence a sua alteza a parar de se achar.

Foi quando Indio disse tchau e eu ouvi uma coisa que ficou ressoando e na minha cabeça.

— Porque quem se acha muito já se perdeu*.


Nota do escritor*: A frase "quem se acha muito já se perdeu" é uma citação da música "Meu louco mundo", da série Julie e os Fantasmas, da Nickelodeon Brasil. 

Anjo das ÁguasOnde histórias criam vida. Descubra agora