16 - O KYOCHE ESPECIAL É VOCÊ

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PARTE II - UMA AVENTURA NO RIO PARDO

O salão de beleza do castelo estava imerso em vapor e cheirava a creme de barbear. Cabeleireiros e outros profissionais corriam para lá e para cá para dar um banho de loja aos funcionários para o grande evento que nos esperava mais tarde. Entre eles, eu. 

O espelho na minha frente refletia o príncipe kyoche quase pronto para encontrar o rei. Um garoto de 13 anos com cabelos brancos, curtos e crespos, moreno escuro e lábios negros, vestido com a túnica real de cor cinza e roxo, as cores da bandeira kyoche.

Um barbeiro estava dando um jeito nos estragos que o campo de treinamento fez na minha cara. Com a gilete, ele fazia o pé do meu cabelo com muito carinho. Até que ele o amputou.

— Ai, poxa, você quase me matou.

— Desculpe, majestade. Eu juro, eu não fiz por mal. Vou pegar uma compressa pra estancar o sangue. Só um minutinho.

Ele saiu de cena e, segundos depois, um pano gelado cobriu minha bochecha.

— Poxa, você não faz nada direito, hein. — eu bufei. — Não bastam as feridas que eu tive naquele inferno, você ainda tem que me ferir mais.

— Ah, deixa de ser dramático também, né?

O comentário me atingiu como uma bolada no estômago.

— Que isso? Que liberdade é essa? Quem te deu autoridade pra falar assim como príncipe?

— Iogo, — ele sacou um papelzinho do bolso. — Seu pai nos deu permissão para te tratar do jeito que você tratar a gente também. Aqui, tem a assinatura dele e tudo.

— Ah, tá. — eu praguejei. — O que é do meu pai está guardado. Ele não perde por esperar.

— Mas, como seu pai ordenou, nós deveríamos puxar papo com você, por mais chato que isso fosse. E, se você fosse grosso, ia se ver com ele. Então, me conta, como foi treinar suas habilidades kyoches no campo, majestade?

— Até que treinar deu pro gasto — eu respondi de má vontade. — Agora a companhia era de péssima qualidade.

— Meu filho estava lá.

— É claro que havia exceções.

— Iogo, tô brincando com você, nem filho eu tenho. — o barbeiro deu uma risada. — Sei que deve ter sido duro, mas pode ficar tranquilo agora. Você terá um mês para relaxar antes de retornar as atividades. Só aguenta mais um pouquinho que, hoje à noite, temos que cumprir a tabela para a chegada do rei.

— Ah, já tava na hora de ele chegar, né? Só vive lá batendo perna. Não duvido que ele inventou essa viagem pra ficar num spar tomando água de coco e recebendo massagem.

— Ele foi tratar de assuntos da guerra.

— Aham, sei, acredito. Não me vem falar de guerra. Eu queria até esquecer disso, mas ninguém deixa.

— Ah, majestade, — o barbeiro pareceu lembrar de algo e mergulhou a mão no bolso do avental. — Falando em esquecer, a lavadeira me disse que encontrou uma coisa no bolso da sua calça. Talvez seja importante para o seu treinamento. É um conpeido?

— Conchego. — eu corrigi, porque o barbeiro era uma das pessoas que confundia focinho de porco com tomada. Aff, até quando eu vou ter que lidar com gente assim? É por isso que eu pinto as unhas de vermelho e corto pra não precisar cortar os pulsos. 

No entanto, assim que eu vi aquele conchego, minha mente foi abduzida por uma lembrança. O diálogo acabou por ali porque tudo que eu conseguia ver no espelho era Raphael dizendo que eu era o kyoche especial.

...

— Iogo, o kyoche especial é você. — Raphael disse. — E, por causa disso, eu quero te convidar pra morar no rio Pardo comigo.

— O quê? — Quando o anjo disse aquilo, eu fiquei tão confuso que esqueci quanto eram um mais um.

— Iogo, eu juro que não posso esperar muito. São ordens do meu pai. Eu preciso mostrar você a ele, porque, na verdade, é ele que estava procurando você. 

Meu coração gelou só de imaginar o que o pai de Raphael ia querer comigo. Ser o kyoche especial não estava nos planos. E se essa peculiaridade fosse algo ruim? O medo do desconhecido fincou meus pés no chão.

— Rapha, eu não posso isso aceitar assim, do nada. Hoje eu tenho que voltar pro castelo. Eu tenho que encontrar meu pai. Se eu desaparecer assim, o país todo vai entrar em desespero.

— Por favor, Iogo, é importante. — Raphael fez birra. — Você tem que me ajudar.

— Raphael, eu não queria te decepcionar, mas...

Nessa hora, as folhas farfalhando mais uma vez desviaram meu foco. Raphael ficou invisível de repente e uma presença desconhecida chegou aonde estávamos. Um guerreiro respirava com dificuldade e seus olhos brilharam quando me viram. Eu engoli em seco, imaginando que ele tivesse escutado minha conversa com Raphael ou que ele achasse que eu estava falando com as árvores. Ele pousou a mão no meu ombro.

— Iogo, você não pode se retirar assim do campo de treinamento.

A estratégia do cachorrinho fofo foi a única que veio na minha mente.

— Desculpa, eu só queria ir para o castelo encontrar logo meu pai. Tô com saudade dele.

— Iogo, pôr a razão acima dos sentimentos também é um atributo de um guerreiro. — ele disse. — Mas Amundos permitiu que eu fizesse sua guarda até o centro da cidade. Depois da rebelião dos ágalos, estamos de olho em você. 

A partir dali, eu estaria sendo vigiado. Não poderia mais falar com Raphael. Os contornos dourados do anjo voavam acima de nós. Foi então que Raphael falou no meu ouvido.

— Iogo, tudo bem você não poder ir agora, mas eu vou me conectar com você por meio do conchego. A minha senha é zuno. Você precisa ir ao rio Pardo, senão do jeito que meu pai é, ele fará questão de ir pessoalmente atrás de você.

... 

Anjo das ÁguasDonde viven las historias. Descúbrelo ahora