7 - MEU ESTÔMAGO RONCA E AMUNDOS PENSA QUE É UM TROVÃO

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— Você ouviu o que ela disse, treinador? — tentei queimar o filme dela. — Ela merece ser expulsa, no mínimo.

Patagona olhou pra mim e pensou em me trucidar, mas reconsiderou a ideia por causa da presença de uma testemunha.

— Iogo, não pense que vai conseguir me comprar. Eu sei das suas artimanhas. 

A única artimanha que eu queria fazer é me teletransportar pro refeitório a céu aberto e não ver nunca mais aqueles dois. 

Então, Amundos deu tapinhas no ombro de Pata. Ela olhou pra ele com cara de "não me toca que eu vou ficar virada no samurai" e até o treinador se assustou com a cara feia dela. Eu fiquei com mais raiva ainda dessa garota. Sorte que o treinador dispensou ela rapidinho pra bem longe de mim que eu tava quase lançando meu ataque ultra maneiro bem no meio daquela fuça. Ela foi sentar nas mesas no centro do campo e eu, fiquei cara a cara com Amundos. 

Foi aí que eu descobri que minha situação também não era a das melhores. Então, já fui me preparando psicologicamente para escutar mais uma bronca do treinador.

— Iogo, você não foi sequestrado? Já pensávamos que os ágalos tinham botado você na fogueira. O país inteiro estava à sua procura. Que bom que você não morreu — Amundos estava quase me abraçando daquele jeito e olha que essa não era a personalidade dele nem aqui nem na terra. Até que ele voltou a ser ele mesmo. — É um grande alívio ter te encontrado com vida... porque agora sou eu que vou te matar! 

Fiquem tranquilos, ele não ia me matar de verdade. Cada um tem um jeito de demonstrar carinho pelos seus semelhantes e aquele era o de Amundos. Só que, aí, veio a pergunta que não queria calar:

— Iogo, se você não foi sequestrado, onde você estava esse tempo todo?

Eu contei toda a verdade, acrescentando algumas coisas pra ele ficar com pena de mim e tirando a parte que eu conheci Raphael. Acho que eu não posso chamar mais isso de "verdade", mas tudo bem. E, falando no anjinho, onde será que ele foi parar quando a gente caiu? Com o olhar, eu ficava procurando uns contornos dourados, mas, até agora, nem sinal de Raphael.

Depois de me ouvir, o treinador pareceu lembrar de alguma coisa. 

— Iogo, o que aconteceu hoje é inadmissível. Se acontecer de novo, os traíras... 

—Traíras? — eu olhei ele como se fosse louco. Amundos fez cara de quem falou mais do que devia e rebateu, me olhando como um papel higiênico usado. Eu pensei em perguntar o que ele queria dizer com aquilo, mas, nessa hora, meu estômago roncou tão alto que o mestre olhou para o céu pensando que era um trovão. 

Antes de eu articular uma frase, ele foi logo me mandando ir no refeitório. E, apesar da curiosidade, sinceramente, eu precisava tirar aquele gosto de espinha de peixe da boca. 

...

Enquanto eu andava, enfim dei de cara com Raphael. Sabe aonde? Na cozinha, vê se pode. Aquele anjo não valia as pérolas que tinha na cara. O garoto estava fazendo a limpa lá e os cozinheiros faziam cara de confusos quando viam que a comida que eles tinham acabado de botar no prato tinha desaparecido. Eu falei que não é assim que se comporta entre os kyoches, que a gente rouba com classe e tal, mas ele não entendeu. E eu também evitei ficar falando muito com ele. Eu já tinha fama de maluco, se me vissem falando sozinho então, aí iam ter certeza. 

Quando chegamos ao refeitório, eu fui comer. No prato, carne de carneiro, batatas doces, cogumelos. E pra acompanhar, um suco verde com gengibre, couve e abacaxi. Raphael estranhou o cardápio, mas como o tempero da comida é a fome, ele meteu bronca e devorou tudo. Também precisei explicar que a madeira também não era comestível quando ele ameaçou comê-la, mas deixa isso pra lá que eu não quero queimar o filme dele aqui.

O que importa é que o anjo veio me perguntar quem era aquela doida que atrapalhou nossa viagem. Então, eu lembrei de Patagona e pintei a imagem de uma demônia de duas cabeças na mente de Raphael. Ah, gente, ela merecia. O rosto dele ficou aterrorizado e o anjo era tão lerdinho que eu nem duvidava de ele ter levado tudo ao pé da letra.

Eu continuei devorando meu prato, mas não podia deixar de pensar na palavra que o treinador usou pra falar dos nossos inimigos: traíras. Pra se trair alguém, é preciso estar aliado a ele, mas, se já somos inimigos, aquilo não fazia sentido. E, falando no treinador, eu percebi uma coisa. Amundos não estava ali por perto. Estreitei meu olhos até o horizonte e só então consegui enxergá-lo. Ele estava correndo até o refeitório a céu aberto e a camisa colava no peito de tanto suor. Quando chegou, o treinador ainda ofegava e ajeitou algo no bolso da camisa. Raphael perguntou quem era ele e eu expliquei. Nessa hora, todos os aprendizes ali olharam pra ele como se ele viesse de outro planeta, mas o treinador não ligou e deu seu aviso.

— Escutem, seus imbecis, depois do jantar, guardem suas coisas nas barracas e voltem. Eu quero falar muito sério com vocês. É sobre a guerra. Eu só posso adiantar que, com tudo que aconteceu hoje, não dá mais pra esconder. A verdade é que um ataque inimigo está próximo.

Anjo das ÁguasWhere stories live. Discover now