17 - O REI ME DÁ UM PRESENTE E JÁ VOU DANDO SPOILER: NÃO É UMA ESTÁTUA MINHA

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Eu não conseguia caminhar dois passos no castelo sem que alguém não meparasse e fizesse perguntas. Acho que morava tanta gente no castelo que aquela casa nunca pareceu minha de verdade. Mas, mesmo assim, abandonar aquilo ali pra morar dentro de um rio era suicídio. Aposto as pérolas na cara do Raphael que onde ele mora não tem gente pra te dar um banho e tosa quando você tem um dia de cachorro vira-lata.

Balancei a cabeça pra espantar esses pensamentos sobre o rio, afinal eu tinha coisas mais urgentes a me preocupar. Os alto-falantes no castelo anunciavam que o rei chegaria às sete da noite a sala de recepção para as entrevistas. Só que, pelas fofocas que eu ouvi no corredor, papai já estava ali. Em algum lugar daquela enorme construção. 

Foi aí que eu imaginei aonde.

Então, de repente, eu estava de frente a uma porta dupla de madeira. As inscrições anunciavam que eu estava diante da sala de cerimônias do reino, onde ficava o trono kyoche e os símbolos nacionais. Eu enfiei só minha cabecinha ali dentro só por curiosidade e nada do meu pai. Só que, quando eu vi, já estava de corpo inteiro. 

Aquele cômodo era incrível. O piso de madeira fazia cada passo meu ressoar no salão. Algumas pilastras pendiam do teto ao chão, dando um charme. As paredes eram amarelas, com texturas, e recheadas de quadros com rostos importantes da história do país. Um deles era meu avô. Era eu, cagado e cuspido. Afinal, ele também tinha a doença dos cabelos brancos. 

Só que a atração principal estava no altar. Um trono dourado perfeitamente esculpido com os símbolos kyoches. O lugar onde meu pai sentou e onde eu também sentaria. Quando pensei em ser rei, a ideia de fugir para o rio pareceu mais atraente. Viver já era uma tarefa difícil e desafiadora, imagina governar um planeta. Tá louco. Tô fora.

De repente, a porta rangeu, estilhaçando o silêncio e meu coração deu um salto. De costas pra entrada, ouvi a porta abrir e bater de volta. Alguém havia entrado. Uma voz fria me atingiu fazendo eu fechar até o fim o zíper do casaco.

— Iogo, — ele disse. — Que surpresa te ver aqui.

Eu engoli em seco. Era ele. Sabia que era ele. Me virei, pronto para encará-lo.

— Pai?

O nome do meu pai era Hared. Ele era moreno, tinha cabelos castanhos e cacheados e olhos negros. Ele usava uma boina creme e vermelha quadriculada, um cachecol fino e uma camisa de manga comprida branca de pano grosso. Todo mundo admirava meu pai pelo estilo dele. Aliás, foi ele que desenhou meu look real, apesar de eu achar que cinza e roxo não combinam. Ele costumava fazer roupas como hobby antigamente, mas a verdade é que, desde que a tensão da guerra começou, a única coisa que meu pai deve desenhar são rotas de como ficar cada vez mais longe de casa. O rei devia estar tão ocupado que devia ter um servo só pra lembrar ele de tomar água. Infelizmente, a verba estava baixa e não deu pra contratar um servo pra lembrar de dar atenção ao Iogo, fazer o quê, né? Aí ele me descartou pra lixeira, ops, campo de treinamento.

Meu pai caminhou devagar até mim e seus passos ecoavam pelo salão. Ele me encarou até eu ficar sem graça e sorriu.

— Iogo, tá tudo bem com você? — ele disse. — É bom admirar sua futura sala, não é?

— Pai, que susto o senhor me deu. — mudei de assuntos porque senão o assunto ia me mudar.

— Hoje o dia já não foi dos melhores e o senhor ainda aparece assim, do nada, brotando do chão? 

— Iogo, calma. Me informaram que você tinha ido aos aposentos reais e eu simplesmente tive que vir aqui. Faz quase um ano que a gente não se vê.

Sua voz era grave, gentil e educada, mas cuidado com a fachada que as aparências enganam. Enquanto o rei me olhava, eu até retribuí, mas não deu pra sustentar seu olhar por muito tempo. 

Ele olhava pra trás toda hora como se esperasse um extraterrestre fosse chegar a qualquer momento pra sugar o crânio dele. Alguma coisa tinha acontecido nesse oito meses que eu fiquei no campo de treinamento. Ele tava diferente. Só que foi só ele lembrar que me enfiou naquele inferno pra toda empatia ir pelo ralo.

— Você com saudade. Ah, vá. Na hora de me botar no campo foi rapidinho, né?

— Iogo — ele descansou sua mão no meu ombro e eu falei que ia cobrar o aluguel. — Você ainda tá reclamando disso? Pensei que cê já tinha superado. Nem me mandou mais cartas pedindo pra sair. Vai dizer que não gostou de nada na experiência?

— Se eu não gostei? Eu odiei. — resmunguei. — Olha, seu Hared, você já foi um pai melhor.

— Iogo — ele se abaixou — odiar uma coisa não significa que ela seja má. A maioria dos kyoches jovens odeia jiló, mas essa verdura é a mais importante pra desenvolver as habilidades kyoches

— Ah, pai, lá vem você com esse discursinho de basta um jiló e fique melhor. O Amundos tirou nosso couro. Até duelar a gente duelou. Fora se sujar naqueles ágalos, domar as patagonas, convocar insetos-de-mel.

— Iogo, reclamar não vai trazer o tempo de volta. Aliás, eu que deveria estar me queixando. Esqueceu? Eu também recebi os relatórios do seu mal comportamento.

— Mas foi o Indio que deu uma tomatada na cara do treinador.

— Eu não sou pai do Indio.

— Esse é um bom argumento, mas...

— Iogo, eu só quero que você veja o que é bom dessa experiência.

— Tudo bem, deixa eu pensar. — dei uma coçadinha no queixo. — A única coisa que eu sei ganhar de todo mundo é como irritar um ágalo. Dou de dez a zero.

— Com certeza, uma habilidade crucial na guerra.

— Não. Ok. Eu entendi onde o senhor quer chegar. Tá certo, eu me tornei um kyoche menos inútil naquele campo. Minha paciência foi testada até o limite.

— Iogo, você não tem jeito, hein. Vou parar de pegar no seu pé. Por enquanto. Agora não é hora de te disciplinar.

— Por que não? Tem coisas mais importantes pra fazer? Eu já sabia...

— Não é nada disso, filho. É que eu queria te dar uma coisa. —Hared desviou os olhos. — Na verdade, um presente.

— Presente? Mentira. — Meus olhos brilharam. Antes do meu pai viajar, eu tava mandando umas indiretas pra ele botar uma estátua minha no meio da cidade pra eu ser reverenciado ao longo das gerações. Com certeza, devia ser isso.

Hared foi na direção do trono até ficar de cara com a parede. Ele retirou um quadro de pintura e eu pude ver um cofre ali. Que esconderijo clichê. Mas, espera aí. O rei não disse que trouxe o presente? Mas se ele estava aqui o tempo todo, por que só agora Hared decidiu me dar? O que seria, afinal? Acho que a minha estátua não caberia ali, infelizmente.

Ele girou os números na combinação e o cofre se abriu. Sua mão foi engolida pela escuridão e voltou como um punho fechado. Então, me veio outra possibilidade. Era minha mesada de um milhão, com certeza.

— Não vale espiar, hein. — ele me lançou um olhar. — Feche os olhos. 

Eu obedeci e estendi a mão pra receber o dinheiro. Mas de repente senti suas mãos envolvendo meu pescoço e o metal gelado tocou minha pele. Eu me arrepiei todinho. Quando eu abri os olhos, me deparei com um colar. Tentei não parecer decepcionado, mas não sou bom nisso.

—Um colar?

— Não, macarrão de metal. É claro que é um colar.

— Seu Hared, você já foi um pai melhor.

— Iogo, pare de reclamar. Esse colar era da sua mãe. Considere um presente dela. Ela sempre quis que você usasse isso.

— Então, porque não me deu isso antes?

Hared checou o relógio.

— Iogo, só considera, ok? Agora vamos a sala de recepção. A coletiva de imprensa vai começar logo logo para falarmos da viagem ao planeta Trino. Eles querem saber como foi.

Foi aí que eu reparei que eu falei, falei, falei, reclamei da vida e nem me lembrei de perguntar como tinha sido a viagem.

— Eu também quero saber. Desculpa, pai, eu nem perguntei, como foi?

— Agora você lembra, né? — o rei deu um sorriso malicioso e me estendeu a mão. — Você vai saber se for na coletiva. Vamos? 

Anjo das ÁguasWhere stories live. Discover now