12 - SE FOSSE BANDIDO, RAPHA IA ASSALTAR UMA LOJA DE ARMAS

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Minha estada no campo de treinamento nunca mais foi a mesma depois que eu conheci o anjo. Não era só porque agora eu dormia acompanhado, mas porque eu podia usar o anjo pra me dar bem nas aulas sem fazer esforço nenhum. 

Ter ele junto comigo ia fazer o treinamento ser moleza. Fora que se viesse um zé mané tirar sarro com a minha cara, era só eu sair de fininho e depois pedir pra Raphael puxar o pé dele na barraca, no meio da noite. Do jeito que o anjo era inocente, era só fazer um drama básico pra ele acreditar que o resto do mundo era meu inimigo. 

E, aliás, foi isso que eu fiz. Escolhi um dia para pôr o meu plano em ação e meus coleguinhas iam se arrepender por não puxarem o saco do príncipe. Ah, que maldade, Iogo. Maldade nada. É porque você não está aqui pra ver o que eles fazem comigo. Todo dia os caras soltavam uma piadinha com o meu nome: "Ah, cadê o Iogo, aquele vovozinho", "Ele se atrasou pro treino porque quer se escorar na gente", "Amundos tinha que dar outra advertência pra ele", "Ele se acha melhor que todo mundo", e etc. 

Mas, em minha defesa, eu não me achava melhor que todo mundo. Meu pai, por exemplo, eu achava ele melhor que eu em algumas coisas. Então, eu falei com Raphael que a gente ia brincar de puxar o pé das pessoas e que aquela noite era a vez dele. Indio escutou a conversa e, na hora, mandou Raphael vigiar a lata de lixo e me puxou pro cantinho da disciplina. Ele, então, disse que era injusto me aproveitar dos poderes do anjo assim, que eu não sabia onde estava me metendo. 

— Indio, para de me dar sermão. Sabe o que eu acho? Isso é só inveja porque eu encontrei o anjo primeiro no rio. — disse eu.

— Olha como você tá falando. Parece que encontrou uma carteira recheada de dinheiro na rua. 

— É quase a mesma coisa, Indio. 

Foi aí que ele resolveu me aterrorizar.

— Iogo, faz o que você quiser, mas além de ser injusto, isso é perigoso. Você não pensa no que você faz. E se o anjo não for flor que se cheire, hein? Você não sabe nada sobre ele, os seus poderes e nem o que ele está fazendo aqui na superfície. E se ele for um espião oyoche colhendo informações sobre você pra usar na guerra? E se ele estiver fingindo ter sua amizade pra depois te sequestrar?

— Ah, cara, não vem querer botar terror em mim não. Rapha teria que ser esperto pra isso e ele é tão esperto que, se fosse assaltar uma loja, com certeza, ia escolher uma loja de armas.

Terminou que eu venci Indio pelo cansaço e o menino foi embora soltando um "vai ver só", um "depois não diga que eu não avisei" e um "quem avisa amigo é". 

A verdade é que eu estava com medo do Indio fazer fofoca pro Amundos e contar que eu menti no dia da rebelião com os ágalos e que tenho um anjo de estimação. Eu estaria ferrado. Nem a minha cara de cachorrinho fofo ia me ajudar naquela hora. 

Apesar disso, o que Indio falou até que fazia sentido. Eu não sabia nada sobre Raphael. Ele tinha dito que o pai mandou ele pra superfície com o objetivo observar os kyoches, mas só agora eu pensei que aquilo era muito vago. Observar para quê? Acho que ninguém observa ninguém sem objetivo. A não ser que Raphael tenha feito uma besteira e o pai botou ele pra fora de casa e ele só estava ali porque tinha casa, comida e roupa lavada. 

Naquela noite, Raphael apareceu na minha barraca transbordando animação e eu estava animado pra tirar aquela pulga de trás da orelha.

—Tô pronto pra gente brincar, Iogo. — ele disse. — Pode só repetir que é pra fazer? Eu esqueci tudo no caminho pra cá. 

— Ei, Raphael, bora deixar a brincadeira pra uma próxima. 

Raphael baixou a cabeça.

— Ah, por quê?

— É porque eu queria conversar contigo. Senta aqui. Eu queria te perguntar uma coisa. Quando eu te conheci no rio Pardo, você falou que tinha sido enviado à superfície pelo seu pai pra ficar de olho nos kyoches. Por que seu pai mandou você fazer isso? 

Raphael estranhou.

— Por que você tá perguntando isso? Meu pai falou que eu não devia falar muito sobre o que eu vim fazer aqui. 

Nessa hora, percebi que tinha que mudar de estratégia para descobrir a verdade.

— Raphael, eu me preocupo com você. Já faz um tempo que você tá na superfície e eu não entendo o que você está fazendo aqui. Se eu souber, eu posso te ajudar.

Eu fiquei esperando as engrenagens na cabeça dele funcionarem e, então, a estratégia funcionou.

— Iogo, — disse Raphael. — Acho que falar com você não tem problema. Mas isso é segredo, hein. Meu pai me mandou aqui com uma missão especial.

— Missão? — foi nessa hora que eu gelei, me lembrando do que Indio disse. 

— Não me diga que você é um espião oyoche colhendo informações pra usar na guerra? Não me diga que você está fingindo ter minha amizade pra depois me sequestrar?

Raphael virou um ponto de interrogação.

— Hã?

— Desculpa — eu me recompus. 

— Acho que me empolguei. Mas, me conta mais,que missão especial é essa?

— Eu tenho que encontrar um kyoche específico.

— Específico?

— Meu pai disse que existe um kyoche que é diferente dos outros. Esse kyoche era um jovem de mais ou menos de treze ou catorze anos agora. E eu só ia conseguir diferenciá-lo se passasse um tempo observando eles.

Naquela hora, eu observei o anjo e vi que de bobo ele só tinha a cara. Tudo que Raphael fez até agora foi pra cumprir a missão. Talvez ele soubesse que puxar os pés dos coleguinhas era errado, mas aquilo podia ajudá-lo a observar mais de perto como era a reação de cada kyoche. Só assim ele podia diferenciá-los. Acho que se Raphael virasse bandido não iria assaltar uma loja de armas. Aquilo também explicava porque ele não tinha ido observar os kyoches da cidade. 

Ele sabia que todos os kyoches daquela idade estavam em campos de treinamento. Ele sabia que o que ele procurava estava por ali.

— E você encontrou alguma coisa?

— Ainda não. — Raphael lamentou 

— E meu pai disse que eu só posso voltar pro rio Pardo depois que cumprir essa missão.

— Eita, tomara que não demore muito.

— Vai demorar não. — Rapha sorriu. — Agora eu tô até mais tranquilo.

— Por quê?

— Porque você vai me ajudar.

Anjo das ÁguasOnde histórias criam vida. Descubra agora