Charles

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Fim do dramaRuindoEu sou a sua fonte de autodestruiçãoVeias que pulsam com medoSugando a mais escura claridadeComandando a construção da sua morte

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Fim do drama
Ruindo
Eu sou a sua fonte de autodestruição
Veias que pulsam com medo
Sugando a mais escura claridade
Comandando a construção da sua morte

Master of puppets


O piano soava por toda a igreja, tão alto que parecia vir da mente de Charles. Não importava a força que fazia para suas mãos cobrirem os ouvidos. O som não era abafado. As fortes notas tocadas no ritmo perfeito quebravam sua jovem mente, criando ruinas de pura escuridão e dor, trazendo a tona lágrimas dolorosas e a sensação de perda.

Seu pai estava morto.

Todos mentiram.

Charles conhecia a maldade do mundo, então não entendia porque seu pai foi o escolhido entre todos. Sofrendo dia após dia, enquanto os verdadeiros vilões viviam suas vidas sem se preocupar, contaminando o mundo com mazelas difíceis de controlar. E seu pai não era o único perecendo ainda jovem, porque havia mais, milhares de pessoas prolongando vidas miseráveis com desejo de voar o mais alto possível.

Elas nunca tinham forças para voar.

Quantos foram enterrados?

Quantos túmulos foram cavados?

Era impossível contar em seus dedos.

Ele era tão sortudo. Podia correr pelo quintal e vestir um macacão para disputar com outros garotos sortudos. Charles tinha sorte e dinheiro, por isso os garotos sem sorte precisavam assisti-lo encostando as testas frias nos vidros da janela. Quando o tocavam, deixavam transparecer toda sua inveja e relutância. Eles ainda sonhavam com o mundo além do hospital opressor. Sonhavam em ser como Charles.

O pianista continuou com sua tortura, até cada nota dilacerar a alma entristecida de Charles. A música entrava em sua mente, contando mentiras como a serpente do Éden. Promessas ditas por santos pagãos. Os dedos dele seguiam a sinfonia, apertando com força o couro cabeludo, raspando as unhas curtas na pele avermelhada. Não havia dor no ato, porque seu pai levou tudo consigo ao ser vestido para o velório.

Ele não sobreviveria a aquilo.

Todos sabiam que o pior viria, mas ninguém quis acreditar.

O conjunto de situações criou uma grande revolta em Charles.

Nem todos mereciam morrer.

Ainda com as mãos pressionadas nos ouvidos, um grito doloroso escapou de seus lábios e seu corpo agiu antes de pensar. O movimento fora involuntário, pois vinha do seu mais profundo intimo. Sua cabeça atingiu a parede de azulejos azuis, criando um som capaz de realmente abafar a canção favorita do seu pai. O alivio preencheu o coração ferido, e o golpe veio com mais força.

Não existia dor enquanto batia a cabeça na parede. Apenas prazer.

Uma. Duas. Três. Quatro.

O som silenciado completamente.

Cinco. Seis. Sete.

O número da perfeição.

Seus olhos abriram-se na direção da luz amarelada do pequeno banheiro da igreja, e ao piscar os olhos sentiu o sangue escorrer como lágrimas. O sangue tornou-se menos espesso com a presença das lágrimas. Os longos cílios grudaram-se, ganhando uma coloração menos natural. A visão antes escurecida, tornou-se puro brilho e satisfação.

Charles conseguiu sorrir verdadeiramente para quem encarava no espelho.

Uma chave havia sido girada na sua mente, abrindo uma porta misteriosa. Nela havia a possibilidade de realmente contribuir para o fim, porque ele havia sido enviado pela morte, e todos que o tocavam seriam levados ao tumulo. Charles veria cada um ser morto e enterrado diante dos seus olhos. Não importavam quais eram as motivações dos outros, bastava toca-lo para receber a punição digna de deuses condenados.

Ali estava sua resposta. A culpa era totalmente dele. Todos que o tocaram foram condenados. A serpente do Éden era na verdade Charles. Sua mente lhe mostrou todos os rostos cheios de vivacidade, antes de serem corrompidos e levados a óbito.

Ele estava salvando aquelas pessoas da crueldade do mundo, porque era um anti-herói. Os verdadeiros vilões deveriam viver ao lado dele e receber suas punições, enquanto os sortudos conheceriam o paraíso que todos os ímpios desejavam.

O sorriso tornou-se uma profunda gargalhada cruel.

A risada era desesperadora. Um som perturbável que vinha da sua profunda escuridão, do lado mais corrompido que esteve escondido por muitos anos, desde o dia em que nascera.

O liquido escarlate fizera caminho pelos olhos, apagando o tom esverdeado para se tornarem carmesim. O caminho se seguiu até as bochechas pálidas. Quanto mais se encarava no espelho, mais enxergava. Na testa, dois cortes profundos que se assemelhavam a chifres pontiagudos nascendo.

Tornara-se um anjo caído. Uma alma condenada. Marcada. Tão belo que a morte o escolheu como seu mensageiro. O frio quase o fez se encolher.

A verdade nunca esteve tão nítida.

Charles fora encontrado rindo sozinho no banheiro, com o rosto ensanguentado.

Disseram que ele enlouqueceu em pouco tempo porque amava muito seu pai e não suportou a dor da perda, mas os médicos aconselharam que passasse por um processo cuidadoso de terapia intensiva para curar os danos mentais provocados por uma notícia perturbadora.

Nada fora feito por Charles.

Ele continuou existindo com ou sem anomalia.

A verdade que vivia dentro de si nunca foi dita em voz alta, porque poderiam tentar mata-lo, porém continuou andando pela multidão esperando vê-los cair um por um, porque os que foram, partiram para o paraíso e deixaram os pecadores para trás. E aqueles que o amavam, tiveram suas vidas perdidas porque a morte era ciumenta e cruel.

Elas morriam de overdose com aquilo que financiava. Eram enterradas por alguma doença. Seu filho desconhecido nunca chegou a ver a luz do Sol. Acidentes aconteciam diante dos seus olhos. Os criminosos tentavam mata-lo sem sucesso. Mais dinheiro entrava na conta bancaria. A fama o banhava toda manhã ao acordar e antes de dormir. Suas namoradas continuavam respirando porque as mulheres que ele realmente gostava estavam enterradas. A maldade vazava pelos poros. Ele lambia a crueldade palpável de sua voz e engolia o veneno doce que escapava dos corpos femininos que chegavam ao ápice. Altas notas comprando flores para a lápide de alguém querido.

— Você é meu maior orgulho, Charlie. Nunca se esqueça que meu amor é infinito, capaz de ultrapassar a morte para chegar até você, meu querido filho.

Ele ainda se via gritando naquele banheiro apertado enquanto todos lamentavam a morte de um homem condenado que não merecia todo aquele sofrimento. Ele também não merecia sofrer aquilo e tantas outras perdas. Então sua única opção foi arrastar a mão até a morte e pedir por mais tempo naquele mundo, tornando-o algo maior e mais perigoso.

Aquele era Charles.

O verdadeiro.

O anti-herói.

O mensageiro do próprio fim.

O homem quebrado.

O perdedor.

O azarado.

O sofredor.

O homem que colecionava perdas, mas nunca vitórias. 

Anti-HeroWhere stories live. Discover now