Charlie

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Pés, não me falhem agoraMe levem até a linha de chegadaOh, o meu coração se parte a cada passo que dou

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Pés, não me falhem agora
Me levem até a linha de chegada
Oh, o meu coração se parte a cada passo que dou

Born to die




Quantas vezes é necessário perder tudo para finalmente deixar de sonhar?

Charles nunca soube a resposta para aquela pergunta, porém a fez centenas de vezes durante a noite, pensando nos sonhos que foram enterrados. Ele parou de acreditar em dias melhores porque todos que amava perdiam a vida, mesmo antes de conhecer o mundo e vivenciar a experiência de respirar e lamentar.

O mundo negou a gentileza quando ele veio ao mundo, e todo o amor que recebeu fora breve, assim como seus grandes amigos. Não teve tempo de compartilhar a velhice com alguns, ou repassar seu aprendizado. Por alguma razão existia uma barreira que o impossibilitava de vivenciar experiências que todos possuíam, deixando para ele apenas perdas sem fim.

Ele queria ser um monstro, e desempenhou muito bem o papel, principalmente quando seu coração foi colocado à prova.

O amor era mais perverso que a morte, porque deixava feridas que nunca cicatrizavam.

Charles contou todos os seus segredos para a única mulher que foi capaz de esconder suas sombras na palma da mão, e o ninava como uma criança solitária. Ela aceitou ser o motivo da sua salvação, desempenhando um papel que apenas uma esposa o faria. Ele prometeu leva-la ao altar, e transforma-la em sua entre mortos e os vivos, para que soubesse que sua alma havia sido finalmente encontrada entre todas e amada verdadeiramente.

O nome dela não estava em sua pele, porém era proferida por seus lábios todos os dias enquanto estivesse vivo.

Ele construiu aquela casa para a mulher que amava, e a tratou como uma rainha. Alimentou seus desejos e permitiu que ela tivesse ainda mais anseio pela vida. Permitiu que caminhasse por caminhos que ele jamais tomaria solitário, seguiu a luz dela como uma mariposa pronta para morrer, e acreditar nas juras ditas ao anoitecer.

Eles se encontraram uma porção de vezes entre o céu e o inferno. Dividiram mais que confidencias. A certeza pairava entre homem e mulher. Eles concordaram em dividir seus nomes com a próxima geração e dar para aquele mundo um presente. O amor.

O que poucos sabiam sobre Charles, é que ele sonhava acordado com crianças de olhos verdes e cabelos loiros correndo por sua sala, prontas para ouvir sua canção sobre o verão ensolarado de Monte Carlo. Ele lamentava pelo fim do sonho quando despertava, porém mantinha suas partituras a espera do seu futuro publico infantil que o amaria de todo o coração.

Nos natais ele esperava paciente por uma árvore grande o suficiente para alcançar o teto. Sabia que aprenderia a embrulhar brinquedos. Brincariam com neve falsa ao redor do sofá. Pendurariam meias na lareira nunca usada. Cantariam musicas natalinas no piano.

Dias perfeitos viriam.

Ele tinha a plena certeza.

Bastava aguardar.

Teria dado certo se realmente houvesse amor e não só luto.

Luto pelas vidas que nunca conheceu, mas amou fortemente.

Charles lamentou pela primeira vez a céu aberto, relembrando sem parar das palavras do médico, paralisado no tempo e se forçando a manter-se de pé. As lágrimas vieram como chamas, marcando-o rudemente por onde passavam, fazendo-o arder, e trazendo de volta as cicatrizes das asas que arrancaram quando ainda era um garoto.

Eles perguntaram se podia enterrar junto dos seus familiares, mas negou a proposta. Seu pai estava lá, completamente sozinho, e preferia ser enterrado antes dos filhos, então Charles pegou para si o último desejo paterno.

Fora ele quem cavou e enterrou na noite silenciosa.

Um garoto.

Um garoto que se chamaria Marc.

O luto não o arruinou, mas arruinou a mulher que seria sua esposa.

A segunda vez viera com um grito de pavor no banheiro. A mancha vermelha estendeu-se pelo chão branco, seguindo-a no tormento entre a dor e a perda. Ele ficou parado na porta sem acreditar no que enxergava, sentindo o aroma da morte, encarando a feição de uma mulher derrotada e de um monstro no reflexo do espelho.

Ela finalmente entendeu que as palavras de Charles não eram apenas palavras jogadas ao vento. Era verdade quando dizia que a morte apaixonou-se por ele e nunca mais o largou. Por onde passava um rastro de destruição era deixado, e não seria diferente naquele instante, porque era o seu fardo.

Charles imaginou que o entendimento a traria para o seu lado na escuridão, porém ela se arrastou para o mais longe possível, deixando-o sozinho quando mais precisava, pois os seus haviam sido levados em plena juventude.

Todos os sonhos foram esquecidos quando aceitou sua verdadeira natureza destruidora. Bateu no próprio peito e engoliu com remorso a vontade de lamentar por mais uma cova.

O tempo não trouxe paz, porém a árvore aumentou a cada semana, lembrando-o com mais força quem era, e tudo o que não teria enquanto vivesse.

Houveram outras com más notícias que o cercaram de dor. Então ele cavava mais uma cova diante da árvore e levava flores.

Um dia fora uma menina que nasceria com os seus olhos, como um anjo enviado pelos céus, mas não resistiu o carma do sangue paterno, partindo do mundo antes de conhecê-lo pessoalmente. Ela respirou uma única vez ao nascer, e bastou por uma vida inteira. Charles a chamou carinhosamente de Cosmic.

Três vidas que carregariam seu sobrenome e sangue.

Nunca o conheceram.

Nunca o amaram.

Um dia talvez tudo mudasse.

Pensava positivamente para a dor amenizar ou desaparecer. Andava por aquela casa vazia com um peso nas costas, então se escondia no seu apartamento repleto de teias de aranhas. Visitava os mortos quando a saudade batia, atormentava os vivos quando na resolvida, revia fotos antigas ao se esquecer de rostos, tocava música natalinas no piano em madrugadas barulhentas.

As notícias ruins o seguiam.

Ele não via esperança no rosto de Judith, porque ela estava tão morta quanto ele. As mentiras dela eram piores que as dele, menos reconfortantes e usadas para sobreviver. O desejo de Charles girava ao redor da luxuria e destruição, então fez de tudo para que ela lhe desse ruina em troca de afeição passageira, sem pensar nas consequências dos atos, pois nunca houve qualquer chance de ser atingido por uma mulher tão frágil.

Ele pensou em Jude presa em sua casa.

Agora pensava em Jude longe do seu território.

O sangue dela mancharia suas gerações enterradas, e Charles poderia vir a sofrer por perdas maiores, porque não doía tanto amar alguém que não dividiu nenhuma de suas dores, diferente dela, que cuspiu em seu rosto todas as suas frustrações e raízes. Charles a viu morrer diante de si, completamente indefesa e pálida, sem ter chance de dizer adeus, e o obrigando a cavar duas sepulturas fundas, porque seu filho iria com a mãe.

Ficar custaria muito.

Toda a sua existência.

Ele pensava em partir daquela casa, porque amou a pessoa errada e deixou que houvesse frutos.

Charles nunca conseguiu partir.

Ele estava preso naquela propriedade como a árvore que crescia cada vez mais, criando sombra para os seus filhos. 

Anti-HeroWhere stories live. Discover now