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Página nova, assunto novo.


  O interior do orfanato é tão clássico quanto o lado de fora. As paredes são feitas de tijolos também, mas apenas no chão e teto que podem ser vistas as tábuas de madeiras.

  Às vezes chego a me perguntar quando tudo isso foi construído.

  Já fiz essa pergunta para a diretora, mas ela apenas respondeu que quando ela nasceu, esse lugar já existia. Então isso prova que essas tábuas são da época dos egípcios.

  Brincadeiras à parte, o orfanato é realmente uma construção velha. É verdade que diversas reformas e restaurações foram feitas ao longo dos anos, mas o ranger de cada degrau nas escadas entrega o fato de que essas madeiras são muito antigas.

  Eu realmente gosto desse lugar. Não porque aqui talvez seja calmo; muito pelo contrário, já que as pestes que correm de um lado para o outro, só dão sossego quando estão fora, incomodando outras pessoas.

  A minha admiração por esse lugar vem justamente por cada detalhe velho que eu consigo encontrar aqui. Existem tantas construções por aí apelidadas de “antigas” mas que não possuem nem meio século de pé, mas o orfanato é uma nobre exceção. Apesar de todas as reformas, o prédio por si só aparenta ter quase um século, mesmo que sua idade real chegue próxima aos cento e cinquenta anos.

  Existem histórias diversas sobre o passado dessas paredes: alguns dizem que reis já dentro desses cômodos; outros dizem que esse casarão pertenceu a juízes famosos em sua época; e até existe aqueles que acreditam em teorias da conspiração e dizem que aqui era algum tipo de manicômio clandestino.

  Confesso que eu faço parte desse último grupo. Uma vez me contaram que existia um porão escondido, e que a entrada era quase impossível de se achar. A fonte da informação era tão confiável (uma criança de doze anos), que eu tive que passar uma semana inteira procurando em todos os cômodos do primeiro andar, mas acabei não encontrando nada!

  Depois disso, comecei a desconfiar de todas as informações que eu recebia dentro dessas paredes, por isso que agora não consigo dizer se esse bilhete estranho é real ou não.

  Depois de pegar o bilhete, fui em direção ao meu quarto, e por causa do horário, encontrei poucas crianças andando pelos cômodos afora. Para o meu alívio e sossego, quase todas as pequenas criaturas incansáveis estudam o dia inteiro.

  Meu quarto fica no terceiro andar, que é onde ficam os quartos dos mais velhos, incluindo órfãos e funcionários. No segundo andar, ficam as crianças menores e alguns funcionários que vigiam elas durante a noite. E no primeiro, tem uma sala enorme, dois cômodos grandes e cheios de livros, uma cozinha consideravelmente grande, e uma sala de jantar tão grande quanto a sala.

  Todos os cômodos, em todos os andares, são interligados por um grande saguão circular, aonde também estão as escadas que levam para o respectivo andar superior. Nos andares de cima, existem somente as escadas no saguão e alguns corredores laterais que se ramificam em outros corredores, com portas de quartos espalhadas em cada um deles.

  Aliás, desses corredores laterais, nós temos uma vista muito linda do saguão no primeiro andar.

  Para chegar em meu quarto, decidi que passar pela porta dos fundos seria mais rápido. Seguindo por esse caminho, eu tive de passar pela cozinha, aonde pude ver Joaquim e suas três cozinheiras ajudantes começando a preparar o que julguei ser o possível almoço de hoje.

Para não atrapalhar ninguém, e também evitar o risco de ser atrapalhado, eu apenas os cumprimentei de longe, e segui em direção ao meu quarto.

  Subi o primeiro lance de escada tranquilamente, mas quando me virei no último degrau para subir até o terceiro andar, vi o pequeno Gui sentado na metade da escada, com a cabeça escolhida nos próprios braços sob os joelhos.

  — Gui? Você está bem?

  Subi alguns degraus indo para mais perto do garoto, levemente irritado com o som de rangido que cada passo meu produzia.


Sei bem o que eu acabei de dizer sobre  gostar da velhice desse lugar, mas, sinceramente, não poder descer escondido até a cozinha é bastante irritante!


  — Como você consegue, Sun?

  Guilherme falou comigo sem levantar a cabeça, e entre suas pernas eu pude ver algumas gotas caindo na madeira, o que obviamente eram lágrimas que escorriam de seus olhos.

  — Você precisa ser mais específico.

  — Quase todo mundo do orfanato te ignora. Uns te odeia, outros têm medo, e alguns só não querem se aproximar mesmo. Mas você age tão de boa!

  Nesse momento, eu pude ver as lágrimas do garoto aumentarem, e até a sua voz começou a falhar.

  — O que foi que fizeram dessa vez, Gui?

  O garoto não quis me responder, então me aproximei mais um pouco, podendo agora encostar nele se quisesse.

  — O que fizeram com você, Guilherme?

  Dessa vez, respondendo a minha pergunta, ele ergueu a cabeça me deixando ver uma marca de corte em sua testa. Eu sabia que aquilo era recente, porque no caminho até o orfanato ele estava sem nenhum tipo de machucado.

  — Detalhes, Guilherme.

  — Eles não estão aqui agora. Alguém entrou no meu quarto e deixou um pote de vidro com água em cima da porta. Quando eu abri a porta...

  Antes que pudesse terminar de falar, o garoto começou a chorar com mais força, e por mais que o corte não fosse tão profundo assim, eu pude ver um minha fina de sangue escorrendo pelo rosto dele.

  — Desce até na cozinha. O Joaquim tá lá. E pede pra ele te ajudar a limpar a bagunça.

  — E se ele perguntar o que aconteceu?

  — Guilherme, alguma vez eu te pedi pra contar alguma mentira?

  — Não...

  — Então conta tudo. E pode falar que eu não vou deixar isso acontecer mais com você!

  — O que você vai fazer, Sun?

  — Vou bater um papo com um demônio.

  — Por favor, não faz nada...

  — Vai logo lá pra baixo seu idiota!

  Segurando o choro, o pequeno Gui se levantou e desceu quase correndo em direção a cozinha.

  Assim que ele sumiu pela porta da cozinha no andar de baixo, eu me sentei em um dos degraus da escada, e fiquei lá esperando até que chegasse a pessoa responsável por aquilo tudo.


Bem...
Parece que o bilhete é um assunto pra outra hora!
 

Entre Raposas e Assassinos: O Diário de SunWhere stories live. Discover now