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  Quando Ana me chamou da entrada da cozinha, minha mente ainda abalada com o recente acontecimento demorou a decidir o que eu deveria fazer. Eu poderia subir direto para o meu quarto e focar no bilhete que encontrei mais cedo; poderia também me sentar na escada novamente, esperando com paciência para resolver uma pendência; ou ir direto para a cozinha e participar do almoço.

  Assim como das outras vezes em que me encontrei em uma situação parecida, acabei optando pela melhor decisão possível: desci as escadas com bastante pressa, andando um pouco desajeitado por causa da dor em meu corpo, e fui na direção da cozinha.


  É óbvio que a minha prioridade é comer. Aonde já se viu, resolver um problema chato com o estômago vazio? Impossível isso.


  Passando pelo saguão aberto do andar de baixo e seguindo por um breve corredor, cheguei até a cozinha e abri a porta de madeira que estava apenas encostada contra o batente. Ao entrar no cômodo, o cheiro delicioso dos temperos que haviam sido usados, me fez esquecer a cena estressante que a poucos segundos fui obrigado a viver.

  Quando tenho algum tipo “problema”, sentir o cheiro de alho, cebola, tomates, ou qualquer outro ingrediente culinário, acaba sendo o melhor remédio que eu posso ter. Uma vez tentei entender porque eu tenho essa habilidade relaxante, e cheguei a uma simples conclusão.

  Minha mãe me ensinou isso.

  Já contei a você que perdi meus pais com dez anos, e talvez em alguma página desse diário, eu escreva com mais detalhes sobre esse trauma, mas nesse momento queria compartilhar uma das muitas lembranças boas e relaxantes que tenho com meus pais.

  Desde que me entendo por gente, ou seja, desde o dia mais antigo que consigo me lembrar da minha infância, eu vi aquela mulher tão linda e graciosa cuidando de seu marido e seu filho, com tanto amor e zelo. Foram tantas as vezes que meu pai chegava com o olhar cansado de tanto trabalhar, mas ao abraçá-la, toda a sua fisionomia mudava ao ponto dele parecer o homem mais feliz desse mundo.

  Me lembro de quando eu tinha a bela oportunidade de ver essa mulher incrível cozinhando e preparando as mais incríveis e deliciosas receitas.

  O sorriso branco que ela dava sempre que provava o seu próprio tempero; a risada assustada quando caía um pouco de água no óleo quente, fazendo assim a maior bagunça no fogão; ou até mesmo quando estava estourando pipoca e ficava cantarolando músicas no ritmo de cada milho estalando; todas essas lembranças estão tão vivas em minha mente, que todas as vezes que sinto o cheiro de comida caseira, meu corpo automaticamente já fica relaxado.

  Também me lembro a vez que insisti para que aquela linda mulher me ensinasse a cozinhar. Sendo sincero, foi um pedido bastante engraçado da minha parte.

  Tenta imaginar uma criança de oito anos, que se cortava até usando tesouras, tentando uma faca de cozinha para cortar um pedaço de carne. Eu sempre acabo rindo de mim mesmo quando lembro desses momentos.

  Ou até mesmo quando tentei imitar aquela mulher habilidosa cortando os legumes em alta velocidade, e quase perdi uma parte do meu dedo. Como que ela deixou eu pegar em uma faca afiada?

  Talvez você esteja se perguntando porque não estou chamando essa mulher incrível de mãe, não é mesmo?

  Bem...

  Junto das memórias boas, ainda existe a mancha que aquele dia deixou. Principalmente porque a morte de meus pais aconteceu na cozinha de nossa casa. Então é complicado pra mim ficar lembrando dessas coisas com tanto sentimento envolvido.

  Agora, por exemplo, estou escrevendo essas palavras, mas a folha do caderno já possui algumas marcas de lágrimas que caíram de meus olhos sem a minha permissão.

  Consegue entender o quão angustiante é ver a minha mente oscilando entre o sorriso brilhante da minha mãe, para a sua expressão de dor e desespero? Ou então ver em minhas memórias o meu pai me erguendo ao ar com muito carinho, e depois ter que ver ele sendo segurado e espancado de uma forma tão cruel?

  Apesar do tanto que essas memórias de minha infância me ajudam a suportar cada maldito dia que passa, elas também são a maior causa de meus surtos internos.

  Recentemente decidi tentar esquecer tudo que tenho de ruim guardado dentro de mim. Mas, infelizmente, percebi que para esquecer a dor, também tenho que esquecer a felicidade.

  É engraçado como as coisas que mais amamos, também são aquilo que mais nos machuca...

  Desculpa. Eu queria passar uma memória feliz e acabei chegando em um final bem diferente.


  Nos vemos na próxima página, né? Pode não parecer mas, imaginar que alguém pode acabar entendendo a minha situação através dessas palavras, me dá mais ânimo pra continuar vivendo um pouco mais.

Desculpa mais uma vez, e até mais...

Entre Raposas e Assassinos: O Diário de SunWhere stories live. Discover now