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  O almoço estava tão delicioso quanto eu havia imaginado. Principalmente as almôndegas caseiras que Joaquim sempre fazia com tanta perfeição. Pelos olhares de cada um, pude ver que não fui o único com esse pensamento, já que até mesmo as outras três meninas que estavam no almoço, saíram da mesa com os pratos limpos e perguntando se de noite iria ter mais. Como de costume, o velho respondeu que sim com um daqueles olhares orgulhosos que todo cozinheiro possui.

  Assim como antes do almoço, eu ajudei Ana a retirar os pratos e copos da mesa.

  — Você sabe que horas a garota nova chega? – perguntei enquanto secava os copos que ela estava lavando.

  — Provavelmente vai ser no mesmo horário de sempre. Entre cinco ou seis da noite. Como você acha que ela vai ser?

  — Pera, vocês não sabem não?

  — Não. Aconteceu alguns imprevistos da parte da prefeitura, e os documentos dela ainda não chegaram pra gente, mas nos garantiram que tudo vai chegar junto com ela.

  — Se não chegar, ela nem sequer pode dormir aqui.

  Eu não tinha nenhuma intenção ruim ao falar, mas minha frase me rendeu um tapa de advertência em meu ombro esquerdo.

  — Deixa de ser chato. Você sabe bem que a gente não vai deixar nenhum órfão dormir sem um teto na cabeça.

  — Desculpa, não foi minha intenção.

  — Eu sei disso, mas...

  Ana parou por um segundo pra pensar no que falar, e com um pequeno suspiro prosseguiu.

  — Acho que estou um pouco nervosa. Já faz algum tempo desde que alguém mais velho chegou pra gente cuidar. Até onde sei, você foi a criança de quinze anos mais recente que caiu sob nossos cuidados.

  — Então ela também vai ser um pouco fechada. – me lembro de olhar para o lado de fora de uma das janelas da cozinha, observando um casal de bem-te-vi que pareciam dançar com o vento.

  — Como assim?

  — Ninguém deixa um lar adotivo porque é super sociável. Ou então o casal não tinha mais condições de cuidar dela, mas não sei o que é pior: não conseguir se encaixar, ou sentir que te deixaram sozinho mais uma vez.

  — Você realmente sentia isso quando pulava de uma casa pra outra?

  — Acho que sim. Depois do terceiro lar adotivo, eu acabei me acostumando com a ideia de não ter uma família, mas isso não muda o fato que eu sempre quis meus pais verdadeiros de volta.

  — Desculpa por ter perguntado. Você é tão normal com a gente, que as vezes esqueço que você também é órfão.

  — Tranquilo. Daqui um mês eu faço dezoito e vou deixar de ser um órfão de verdade.

  — Você pode continuar dormindo aqui enquanto não arrumar um lugar pra ficar. Contanto que não cause problema, ninguém vai ligar não.

  — O velho vai aprovar isso?

  — Pode não parecer, mas foi ele quem deu essa ideia.

  — Eu fico com um certo medo quando ele é legal comigo.

  — Deixa disso. Até você sabe que o Joaquim só um pouco chato, mas tirando isso, ele ama todas as crianças que vivem dentro dessas paredes, incluindo você.

  Decidi ficar em silêncio. Eu não odeio o Joaquim, e mesmo que ele sempre acabe me batendo quando eu passo dos limites, as vezes imagino que talvez meu pai tivesse sido um pouco “parecido".

  — Você sabe o nome da garota?

  — Alice dos Santos.

  — Entendi. Se parecer que vou me atrasar, consegue me ligar umas meia hora antes dela chegar?

  — Posso sim. Mas aonde você vai?

  — Tenho que me encontrar com o Luck. Eu até queria ficar e esperar o Miguel, mas acho que seria ruim pra novata, né?

  — Até que as vezes você é capaz de ser sensato, Sun.

  Antes de eu sair da cozinha, Ana começou a rir. Foi algo normal da parte dela, mas me fez refletir um pouco sobre como ela via uma garoto problemático como eu.

  Do orfanato até a casa do Luck é quase uma hora de caminhada, e por já ser quase uma da tarde, eu não tinha tempo sobrando pra ter preguiça deitado na minha cama. Antes de sair, eu apenas troquei meu uniforme do colégio, e me vesti de um conjunto mais leve, juntamente do meu colete bege favorito. Alguns riem de mim por gostar de usar colete mesmo sendo brasileiro, mas se as outras pessoas não possuem bom gosto para roupas, a culpa não é minha.

  Antes de sair, procurei por Guilherme e apenas pedi para que ele ficasse longe do Miguel e companhias até que eu chegasse. Obviamente ele pediu pra ir comigo, mas eu não estava com muito tempo sobrando pra acompanhar os passos dele. Após avisar a Ana e os outros que eu estava saindo, segui em direção a casa de Luck.

  — Ô solzinho judiado. Por que o idiota do Luck não podia só ter falado tudo naquela carta? Se bem que acho que seria pior tentar entender a letra dela em um texto muito grande. Droga.

  Após quase quarenta minutos de caminhada, cheguei na esquina da rua de Luck, e assim que vi aquela casa branca de muro baixo, algo me chamou a atenção.

  — O que você aprontou dessa vez?

  Ao ver uma ambulância parada bem em frente ao portão de sua casa, eu saí correndo com um leve aperto em meu peito, pedindo a Deus que nada de ruim tivesse acontecido.

  Quando passei ao lado da ambulância fechada, pude ouvir alguns barulhos de tosse vindo de dentro, mas sem nem pensar eu segui sem direção ao interior da casa. Para minha felicidade, vi Luck em pé na frente da pequena TV da sala, mas, para minha inquietação, vi uma enorme mancha vermelha na camisa amarela que ele estava usando usando.

  — O que aconteceu, Luck?

  Ele não me respondeu. Pude ver suas mãos se levantando até seu rosto, mas ainda assim, ele não me respondeu.

  — De quem é esse sangue?

  Me aproximei devagar dele, e quando já estava a poucos passos de distância,  pude ver a faca da cozinha brilhando com um tom vermelho sobre o carpete marrom da sala.

  — Quem fez isso, Luck?

  — Eu... – a voz dele saiu junto de um soluço.

  — Para de brincadeira, você nunca feriu nem um mosquito!

  Ele se virou devagar, e apesar do sangue em suas mãos que sujava seu rosto desesperado, eu também vi as lágrimas começarem a descer sem parar de seus olhos tristes.

  — Eu matei o meu padrasto, Sun.

Entre Raposas e Assassinos: O Diário de SunWhere stories live. Discover now