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  Não havia se passado sequer vinte minutos, quando eu ouvi uma voz tão familiar me gritando do primeiro andar, mas subindo em passos altos e fortes.

  — Sun, seu moleque imaturo, que merda você tá pensando em fazer?

  Após ouvir tudo o que o pequeno Gui tinha para falar, provavelmente a primeira opção de Joaquim não foi correr desesperado até mim, mas me conhecendo, acredito que tenha sido sua segunda ou terceira opção.

  — Como vai, Joaquim? O almoço já tá pronto?

  Joaquim é um velho de boa aparência, alto e com o resquício do que um dia foram músculos magníficos, mas agora com seus mais de setenta anos, ele apenas podia sonhar com aquele físico tão incrível que um dia tivera. Seus cabelos brancos eram notáveis mas não o tornavam feio. Muito pelo contrário, eu desejo envelhecer como esse homem, já que suas mechas de cabelo esbranquiçadas pelo tempo são como joias no corpo de uma rainha.

  — Deixa de papo furado. Que exemplo ridículo é esse que você tá dando problema Gui?

  Por mais que fosse um dos idosos mais gente boa que eu já encontrei em minha vida inteira, Joaquim acaba colocando muito medo quando se irrita, e suas rugas começam a se juntar em uma expressão de fúria.

  — Me diz, Joaquim, que merda você espera que eu faça?

  A está altura, Joaquim já estava a poucos degraus de distância de mim, o que me fez invejar ainda mais o físico desse velho.

  — Seu idiota! Se você é um caso perdido, tenta não levar os outros pro mesmo caminho!

  Eu me levantei nesse momento, irritado com a verdade que ele havia jogado em minha cara, e tentei parecer mais ameaçador aproveitando a diferença na altura.

  — Cala a boca, seu velho inútil. Volta pra sua cozinha e deixa que eu resolvo meus problemas!

  Se a minha ideia era o ameaçar, pode se dizer que falhei miseravelmente.

  Com passos rápidos, o velho Joaquim subiu a distância que separava a nós dois, e me agarrou pelo colarinho da roupa com as duas mãos.

  — Você sempre provoca quem não deve, quer mesmo descobrir como ameaçar alguém de verdade?

  — Tenta a sorte, seu velho decrépito! – (nesse momento, eu me lembrei da voz de Beatriz, me dizendo na sala de aula que eu deveria aprender a ficar calado).

  Usando de uma força considerável, senti Joaquim me erguendo do degrau em que eu estava e, ignorando todas as minhas tentativas de resistir ao seu agarrão, ele me arremessou escada abaixo.

  Nós estávamos na metade da escada para o terceiro andar, então a minha queda foi de quase três altura, até bater com as costas no piso de madeira do segundo andar. Assim que meu corpo sentiu a resistência do chão, também me lembro de sentir uma de minhas costelas estalando, como se tivesse se partindo.

  — Satisfeito, Sun?

  Enquanto descia os degraus devagar, Joaquim começou a limpar suas mãos como se tirasse poeira delas, e logo em seguida estalou os dedos.

  — Ou você quer mais uma dose de juízo, moleque?

  — Seu velho! Não acredito que você realmente fez isso!

  Eu estava me esforçando para me levantar, mas o máximo que consegui foi me arrastar até a parede mais próxima e sentar me escorando nela, enquanto Joaquim se aproximava de mim.

  — Homens de verdade sempre cumprem com as suas palavras. Guarde isso na sua memória.

  — Agora você também vai fingir que é meu pai?

  — Esse é um segredo que eu tinha que te contar, Sun...

  — Como assim?

  Joaquim já estava perto o suficiente de mim, então ele se abaixou colocando o seu peso sobre o joelho esquerdo, e aproximou seu rosto.

  — Eu sou seu pai, Sun!

  — Não fode, Joaquim! Some daqui!

  Ele se ergueu novamente, e com um sorriso no rosto e a sua habitual voz mansa, voltou a falar comigo.

  — Mas é verdade. Eu te alimento, cuido de você, dou lição de vida e ainda te dou uma surra. Se não sou um pai, então eu sou o quê?

  — Um velho gagá?

  A risada de Joaquim saiu tão natural, que até eu cheguei a esquecer que estava com uma costela fraturada.

  — Sun.

  — Fala, velho.

  — Tenta não fazer nada muito idiota. Infelizmente, se uma briga acabar começando aqui dentro, sou eu quem vai ter que separar. E eu odeio ficar forçando esse corpo velho.

  — Já passou da hora de você se aposentar mesmo.

  — Quem está sentado no chão, com o corpo dolorido, não sou eu!

  — Idiota.

  Não acredito até agora que ele realmente me jogou da escada e saiu andando da maneira mais inocente possível.

  Enquanto eu ainda estava caído, Joaquim começou a descer as escadas de volta para o primeiro andar.

  — Senhor Joaquim, como o Sun está?

  De longe, eu pude ouvir a voz chorosa do pequeno Guilherme.

  — Pode ficar calmo, Gui. Eu ajudei ele a pensar um pouco mais antes de fazer qualquer coisa.

  — Sério?

  — Sim. Mas é melhor deixar ele sozinho. Digamos que a verdade dói... Bastante. – (que velho mais sacana).

  Quando eu finalmente ouvi a porta da cozinha se fechando, eu fechei meus olhos ainda sentado no mesmo lugar, e soltou um longo suspiro, acompanhado de um gemido de dor por causa da fratura.

  Devo ter ficado alguns minutos sentado, até que finalmente ouvi barulho de passos mais uma vez.

  — Seu velho. Se você veio aqui me bater de novo, é melhor ir embora...

  Antes que eu pudesse fazer qualquer tipo de ameaça para Joaquim se afastar, eu vi uma cena que fez com que meu coração acelerasse mais uma vez.

  Acompanhando o ritmo dos passos na madeira rangendo, alguns pelos laranjas começaram a surgir na escada, até que finalmente pude ver o rosto de uma raposa. Alguns segundos e mais alguns passos depois disso, e eu finalmente pude ver a figura completa.

  Um garoto, que parecia muito com as crianças do orfanato, usando uma máscara de raposa parou na minha frente, e ficou me encarando de cima enquanto eu ainda tentava aliviar aquela dor em meu corpo.

[ Imagem meramente ilustrativa ]


  Alguns minutos se passaram e aquela figura continuou me encarando, até que eu finalmente comecei a me levantar do chão

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  Alguns minutos se passaram e aquela figura continuou me encarando, até que eu finalmente comecei a me levantar do chão. À medida que eu me erguia com dificuldade, o olhar daquele garoto me acompanhava e um sorriso começava a surgir através da máscara.

  Quando finalmente fiquei totalmente de pé, me vi de frente para aquela raposa sorridente me encarando com olhos tão vazios e sem vida.

  Meu corpo não queria reagir. Por mais que tivesse conseguido me levantar, eu não conseguia fazer mais nenhum movimento. Isso era medo? Pavor? Desespero? Não sei descrever exatamente o que era, mas me impedia de me mover para longe, e mantinha o meu olhar fixo nos olhos falsos daquela máscara.

  Mais alguns segundos se passaram, e eu senti como se meu coração fosse sair de meu peito rasgando tudo pela frente, e até mesmo a minha respiração parecia querer fugir de meu corpo diante daquela situação.

  Nós iríamos ficar assim, parados um de frente para o outro esperando até que a existência de algum de nós se esvaísse, até que finalmente ouvi outra voz tão familiar.

  — Sun, cadê você seu idiota, o almoço já está pronto. Vem logo comer!

  A voz de Ana, uma das cozinheiras ajudante, me despertou da minha alucinação tão vívida, me salvando de quase enlouquecer com algo que nem sequer estava ali de verdade. Apesar de tudo, acho que eu tenho um pouco de sorte, né?


Quanto mais tempo vivo, maior é a certeza da minha loucura!

Entre Raposas e Assassinos: O Diário de SunOnde histórias criam vida. Descubra agora