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O mundo parecia queimar em fogo e glória. O som de cascos ecoou pela cidade e a deusa curvou-se rapidamente para trás, os cabelos metálicos açoitando o ar no movimento. Sabia que não tinha muito tempo, minutos, se fosse sortuda, até que a encontrassem e tirassem seu tesouro, sua alma...

  As portas de ferro na sua frente abriram-se e ela congelou, apertando a caixa de veludo contra si em um gesto automático. Por trás da nuvem de fumaça e cinzas que elevou-se da casa, surgiu uma mulher idosa e pálida que ergueu as mãos para a deusa. Eram enrugadas e pequenas, trêmulas sobre a luz do fogo.

— Entre, minha criança. Aqui você estará segura.

  A deusa hesitou em questão de segundos, cogitando as opções que possuía naquele momento, e balançou a cabeça.

— Não preciso de água e nem de comida, minha senhora. Preciso apenas de um lugar para fugir da guerra.

  A mulher voltou para as sombras da casa e, após olhar ao redor para certificar-se de que não estava sendo vigiada, a deusa a seguiu. A porta fechou-se atrás de si, e ela pôde observar que uma lamparina iluminava o recinto: era uma ampla sala decorada com móveis vitorianos cobertos de pó, além de cobertores e almofadas espalhadas pelo chão de madeira rangente. As paredes cobriam quase que completamente o som exterior, e o silêncio pairando no ar chegava a ser perturbador. A senhora estava parada em pé perto de um piano de cauda, apoiando-se em uma bengala prateada.

— O que é isso que você carrega com tanto medo, pequena? — indagou, apontando o dedo fino para a caixa de veludo azul.

— É o meu bem mais precioso – respondeu a deusa, passando a mão nos cabelos. Estavam quentes por conta do fogo, assim como toda a sua pele. — Preciso entregá-lo para uma pessoa, mas não consigo caminhar pela cidade por conta dos soldados. Tenho medo que eles me confundam com o inimigo em virtude de minhas roupas — ela indicou a capa branca como a neve. —, por isso preciso me refugiar em algum lugar seguro até que o alvoroço diminua. Tenho esperanças de que tudo acabará ao amanhecer.

  A senhora estava acendendo outra lamparina, mas fixou seus olhos claros na deusa assim que a mesma acabou de falar. Olhos não cinzas, mas sim prateados, que lhe pareciam mais familiares do que deveriam ser.

Ah. Eu não acho que a guerra acabará tão cedo, cara senhorita viajante — respondeu, cobrindo os cabelos brancos com o capuz da capa. — Ela terá momentos de paz, sim, mas não se engane. Suas próximas gerações hão de pagar pela sua traição, irmã.

  Uma espada tomou forma nas mãos da deusa e ela a ergueu no momento em que a senhora desapareceu; em seu lugar, um homem de cabelos cor de fogo surgiu em luz e superioridade, carregando consigo um sorriso cínico. Áries. Ele partiu pra cima dela com uma adaga em mãos enquanto ela colocava a caixa de veludo dentro da bolsa que trazia consigo e corria para o lado contrário do irmão, escancarando as portas de ferro com toda a força que tinha dentro de si. Não lutaria com o seu irmão, não, isso seria suicídio — apesar de saber que ele não podia matá-la, ele ainda podia torturá-la bastante. 

  Ela precisava proteger seu tesouro a todo custo antes que eles pusessem as mãos nele.

  A deusa correu desviando-se do fogo, os gritos de Áries ecoando atrás de si, enquanto passava por esquinas e casas abandonadas, até se encontrar em um lugar sem saída. O coração socava as costelas dentro de seu peito e ela arfava, tentando controlar a respiração.

Escorpião. – a voz de Áries era fria como cristais de gelo. O nome dela era como veneno nos lábios dele. — Pare de tentar fugir dos seus iguais. Você precisa arcar com as consequências do que cometeu, precisa consertar os erros de sua traição — os olhos prateados como a lua se dirigiram à bolsa dela, e então brilharam de desejo. — Entregue-me a caixa. Você sabe que é a coisa certa a se fazer. Não só para o seu bem, mas sim para o nosso bem, o bem do mundo.

  Ela não pensou antes de agir; era como se o seu corpo estivesse atuando por conta própria, assumindo o lugar de protegê-la. A deusa pegou a caixa e apertou contra o peito, sentindo os objetos de imensurável valor tamborilarem na estrutura de veludo. Ergueu mais uma vez a espada que ainda tinha em suas mãos, e Áries engasgou de espanto.

— Não cometi traição alguma, irmão – ela brandou com a voz mais firme que conseguiu, tendo certeza de que ele entenderia cada palavra. — O mundo é meu por direito, direito de nascença, e assim há de ser para sempre. Tomei as decisões que eu pensei serem certas. E não me arrependo nem por um minuto.

  Ele piscou. Antes de dar o último suspiro, ela admirou sua visão: o irmão parado com a expressão de extremo choque, os longos cabelos balançando alto por conta do vento, a armadura de ouro brilhando sobre a noite e a parede de fogo atrás dele crescendo cada vez mais, as chamas quase alcançando o céu. Então é assim que o Paraíso deve ser, pensou. 

— O sangue dos seus descendentes irá decorar o chão de mármore, e seus corpos hão de servir como oferenda a mim. — a voz dela parecia ecoar pela cidade inteira, cortando a guerra. — Pois eu, deusa da morte e do Submundo, da glória e do poder, hei de viver eternamente... na alma das minhas Herdeiras. Fiat iustitia et pereat mundus, Áries.

  E, após dizer isso, atravessou a caixa de veludo com a lâmina no exato momento em que Áries gritou e correu para impedi-la, mas já era tarde demais. Uma luz dourada jorrou do objeto, iluminando o mundo, e a deusa Escorpião sentiu seu peito em chamas, queimando seus órgãos e destruindo seu corpo. Ela caiu de joelhos, derrubando a espada no chão de pedra, e viu a caixa com o tesouro desaparecer, deixando apenas lembranças para trás.

  O irmão a ergueu nos braços enquanto ela via o mundo despencar ao seu redor, em fogo e glória.

Elemento Água - Série Witches (I)Where stories live. Discover now