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Helena não sabia há quanto tempo estava dormindo até que sentiu um par de mãos em seus ombros. Ela se levantou de imediato, sem ter certeza do que exatamente ia fazer, até que se deparou com o vigia gordo e baixinho do jardim.

― Fecharemos em meia-hora, senhorita. ― Avisou.

Helena assentiu e esperou que ele partisse para sentar novamente no banco de madeira do Jardim Botânico. Gostava de ir até lá quando queria pensar. Claro que nunca passou tanto tempo lá até aquele dia. 

A sua vida havia se tornado uma confusão e ela não fazia a menor ideia de como lidar com isso. E quando dizia isso se referia ao estranho poder que emanava dela em certas ocasiões. Normalmente quando estava irritada.

A sensação começou nas vésperas do seu abandono, aos sete anos. Helena fez um copo de cristal explodir em sua mão depois de presenciar uma briga dos seus pais, que agora ela não lembrava o motivo. No dia seguinte fora deixada aos cuidados de Madalena Dove e sua irmã mais nova, que na época era só uma adolescente.

Os seus pais prometeram que voltariam em breve, mas nunca o fizeram e desde então ela teve plena certeza de que fora por causa daquele estupido copo de cristal quebrado. Quem iria querer ter uma aberração como filha?

Nos dez anos seguinte ela reprimiu ao máximo que pode aquelas sensações e julgou que haviam desaparecido. Até que o incêndio começou, ou melhor, até que começou o incêndio e fez Madalena virar pó.

Helena pôs as mãos na cabeça e forçou a mente a se concentrar. Nem mesmo a presença das arvores e todo aquele ar puro refrescante estava ajudando. Não podia voltar para casa, não quando aqueles que queriam prendê-la estivessem atrás dela.

Helena observou as famílias felizes de comercial de margarina indo embora. Os pais costumavam tirar fotos de qualquer coisa que os filhos faziam, mesmo as mais estupidas, com aquelas maquinas fotográficas profissionais que podiam alimentá-la por meses.

Há muito tempo ela havia parado de sentir falta dos pais, se acostumou ao fato de que estava sozinha no mundo e que eles a deixaram para trás. Contudo, naquele breve momento, enquanto a família feliz sorria e ia para a sua casa aquecida e abrigada da chuva, que começava a cair, ela se perguntou como seria ter uma família.

Pondo fim as suas divagações, Helena observou o pequeno palacete de vidro que mantinham para visitação. O orquidário era uma das suas partes favoritas do jardim. Se fosse silenciosa o bastante, poderia passar a noite ali e pensar no que fazer no dia seguinte.

Helena se revirou no chão duro mais uma vez. A tempestade não lhe incomodava nem um pouco para dormir, o que lhe assustava mesmo eram os raios e o fato de estar cercada de árvores. Como se não bastasse, o seu estomago roncava e ela não conseguia parar de pensar no jantar sem graça da noite passada, que agora lhe parecia um banquete.

O som de vozes ao longe a despertou do seu pensamento saudoso. Não eram os guardas fazendo ronda, portanto ficou mais atenta e silenciosa do que nunca.

Ao longe duas pessoas discutiam. Os músculos do seu corpo se contraíram de excitação e medo, mas ainda assim, permaneceu em silêncio.

O Jardim Botânico era enorme e as suas chances de fuga eram consideráveis, pois conhecia aquele lugar como a palma de sua mão. Só de observar conhecia as rondas dos guardas e sabia quando se tratava de um novato ou não. A vantagem a tranquilizou um bocado.

As vozes foram se aproximando e Helena prendeu a respiração, quando as silhuetas de duas pessoas passaram feito sombras nas paredes do orquidário.

― Como você tem tanta certeza de que é por aqui? ― Disse a voz feminina estridente. ― Eu disse que perdemos o rastro lá trás, mas você não quer me ouvir.

Rastro. Helena pensou.

― Eu simplesmente tenho. ― Respondeu a voz masculina, conhecida para Helena.

― Vamos nos separar. Eu vou até a entrada refazer o caminho e veremos se não deixamos algo passar.

Helena não ouviu a confirmação do garoto, mas imaginou que ele havia concordado. Depois de alguns minutos, que mais pareceram horas, ela ouviu o rapaz se afastar e depois de esperar mais um pouco julgou que aquela era a sua chance de escapar.

Ela não fazia a menor ideia de como aqueles dois a seguira até ali, mas não gostaria de tentar a sorte. Helena se levantou de maneira silenciosa e foi em direção ao esconderijo da mochila que levava consigo. O desespero bateu quando não a encontrou.

― Procurando por isso? ― Perguntou a voz na escuridão.

Helena se levantou num salto e examinou o orquidário com os olhos. Não fazia a menor ideia de aonde o desconhecido estava, mas suspeitava de que ele estava posicionado na única saída. Engoliu em seco.

― Não te ensinaram que é roubar é errado? ― Desafiou. ― Essa mochila é minha. ― Helena tentou disfarçar o desespero na voz.

― Não te ensinaram que invadir propriedade alheia é crime? ― O desconhecido disse com desdém.

― Que eu saiba quem invadiu a casa dos outros foi você. ― Acusou com desprezo na voz. Precisava ganhar tempo, enquanto pensava numa solução.

― Eu não invadi, fui chamado. Já você.... Talvez eu fique com essa mochila para compensar o fato de que fui atacado.

Helena cerrou os punhos. Havia arriscado muito por aquela mochila. Se não fosse por ela àquela altura já estaria longe o bastante da capital, mas tinha que voltar por ela.

Nela estavam guardadas as últimas lembranças que tinha da sua antiga vida, antes de ter sido abandonada. A manta velha de quando era recém-nascida, a escova de cabelo de prata, ainda valia algum dinheiro, e o livro que fora presente de Maggie.

Não tinha nenhum apreço pelos pais, não depois do que eles fizeram, mas aqueles objetos eram os resquícios da sua primeira infância. Era tudo o que realmente podia chamar de seu. Sem contar na adaga guardada no bolso da mochila.

― Fique com ela. ― Disse, com total controle. ― Não tem apreço nenhum para mim. ― Mentiu.

― Eu reconheço um mentiroso quando vejo um. ― Foi tudo o que disse. ― Você está com sorte, vou devolver a sua preciosa mochila se, e apenas se, você aceitar vir comigo.

Helena riu em escárnio. Aquele garoto era mesmo muito pretensioso e burro por sinal. Se queria jogar aquele jogo, iria ser facilmente enganado.

― É pegar ou largar. ― Ele reiterou a oferta.

― Tudo bem. ― Helena concordou seriamente. ― Mas esteja ciente que isso é chantagem.

― Chame do que quiser. ― Ele provocou.

O rapaz jogou a mochila aos pés de Helena, que num movimento rápido desembainhou o laço que prendia no seu jeans e chicoteou em sua direção. O rapaz bloqueou o golpe do laço com uma lamina e gargalhou.

O desconhecido puxou o laço num movimento rápido e Helena não teve tempo o bastante para soltá-lo. Ela cambaleou para o chão, parando à centímetros das suas botas de couro caras.

― Achou que eu ia cair duas vezes no mesmo golpe? ― Tripudiou.

― Não mesmo. ― Helena gritou.

Ela se levantou rapidamente e atingiu o rapaz no queixo. Não estava acostumada a brigar no escuro, mas quando ouviu o silvo de dor do rapaz, soube que havia acertado. O rapaz se distraiu com a dor por um segundo, mas foi o bastante para Helena correr em direção a saída do orquidário.

Já podia ver a lua através da copa das árvores e a iluminação dos prédios ao redor do jardim, quando a sua visão foi subitamente bloqueada.

Helena olhou para o rosto do homem alto e robusto, que cruzou os braços, bloqueando o seu caminho. Droga. Atrás dele havia uma pálida garota de cabelos ruivos e olhos azuis. Mil vezes droga. 

As Raças IrmãsWhere stories live. Discover now