Proteja-se, senhorita. O qilin prateado fez uma reverência solene e Helena repetiu o gesto, acariciando o seu rosto, até que desapareceu nas sombras da planície.
Helena avistou o manto azul-marinho da cor da noite agachado sobre o telhado de uma fábrica que ficava em frente ao porto de Brascard.
Aquela parte da cidade era cheia de armazéns que fervilhavam de trabalhadores e compradores durante o dia. O porto de Brascard só não era tão movimento quanto de Navisko, que era menos rígido quanto às importações e exportações para a cidade.
Helena tomou o cuidado ao se aproximar, mas antes que pudesse anunciar, Charlotte se virou de maneira ágil com uma adaga na mão. Helena pulou para trás e por pouco não foi atingida.
― O que você está fazendo aqui? Falei para ficar na Academia!
― Não vai se livrar de mim tão facilmente. ― Helena se agachou.
― Estou percebendo. ― Charlotte murmurou, irritada.
― O que está acontecendo?
Helena avisou o navio à vela discreto atracado. Não havia sinal de ninguém ali para descarrega-lo, mas caixotes de madeira se amontoavam no convés.
― O navio atracou a pouco. ― Ela respondeu. ― Os marinheiros saíram para tomar uma bebida num bar aqui perto. Mas há guardas posicionados no local.
― Qual é o plano?
Charlotte mostrou a Helena uma máscara dura e que imitava as feições de um rapaz. Um rosto-falso era um objeto usado por espiões protetores em período de guerra. Haviam leis que proibiam o seu uso de maneira ordinária.
― Só trouxe um. ― Ela experimentou. ― Vou andar até lá e investigar. Se alguém perguntar direi que só estou querendo uns trocados e que posso ajudar a descarregar o navio.
― E quanto a mim?
― Você espera aqui. ― Ela entregou a luneta. ― No menor sinal de problema quero que você suma.
Helena assentiu, mesmo sabendo que não faria isso. Não era uma garota de fugir e deixar os outros para trás. Charlotte assumiu as feições de um rapaz mais novo que ela, cujas roupas eram simples. Apesar de estar sob o rosto-falso, os olhos eram os mesmos. Ela saltou habilmente e Helena a observou entrar no navio e desaparecer.
Foram os quinze minutos mais longos de sua vida até que uma gritaria irrompeu e uma Charlotte descabelada e ensanguentada surgiu no convés. Os homens gritaram e sacaram as suas armas. Helena pegou a besta e atirou sem pensar.
Os marujos equipados com armas potentes e com a insígnia dos Profetas do Caos escrutinaram os telhados em busca do atirador. Helena aproveitou a presença de uma gárgula de pedra e mirou nos três guardas que investiam contra Charlotte, o que lhe deu segundos preciosos para fugir entre as vielas.
Helena a acompanhou saltando pelos telhados e não pode fazer nada quando as suas flechas acabaram. Os profetas quebraram uma claraboia e vieram em seu encalço no telhado. Ela parou de correr e sacou o laço brilhante. Atingiu um deles na perna, que bateu a cabeça. O guarda gritou e só então Helena reparou que o laço fora revestido com um fogo incandescente de cor dourada.
Ela girou a arma e num só golpe decepou o braço de um homem. Haviam muitos deles apesar de tudo e estavam armados com pesadas espadas e arco-flechas.
Duas sombras surgiram no telhado e se movimentavam rapidamente. Tanto ela quanto os profetas ficaram momentaneamente assustados, pois ninguém sabia de qual lado eles estavam.
Num movimento rápido o capuz de um deles caiu e Helena reconheceu os dreads de Thomas, que golpeava os outros sorrindo. A outra figura também havia se revelado e lutava com uma expressão fria feito um anjo de gelo. Will.
― Ajude Charlotte. ― Ela gritou para Thomas.
O protetor assentiu e correu até a ponta do telhado, então saltou para a escuridão.
Mais guardas chegavam e o seu poder ardeu dentro de si. Ela formou uma esfera de fogo dourada e a disparou. Foi como se a sua magia tivesse vida própria. Não atingiu o marujo que vinha em sua direção, mas voou para cima deles como um globo de luz e parou.
Will olhou para cima e correu em sua direção. Ele a puxou pelo o seu manto e os dois correram em direção a borda do telhado e saltaram bem a tempo de a esfera explodir e se transformar numa chuva de fogo.
Uma charrete de feno amorteceu a queda deles. Não houve tempo para perguntas ou para orientação, os dois apenas correram por becos e vielas escuras deixando a comoção para traz. Só pararam quando estavam longe o bastante do porto de Brascard, mas ainda não estavam seguros.
― Não devíamos procurar por Charlotte e Thomas?
― Eles sabem se cuidar. ― Wil disse, seco.
Ela o seguiu até um prédio cuja fachada era colorida e animada. O cheiro de fumo e álcool empesteou as suas narinas. Ela reconheceu o ambiente, mas não disse nada.
― Diga a Maximiliam que William está aqui. ― Ele disse ao segurança.
Will na maior calma pegou um copo de vinho de uma das funcionárias seminuas e esperou no bar.
― Cardragon, achei que tivesse dito que não retornaria mais ao meu estabelecimento. ― Maximiliam o cumprimentou com simpatia. ― Ah, vejo que trouxe a sua bella signora até aqui.
Will arregalou os olhos e Helena o cumprimentou.
― Eu a conheci meses atrás e quando pus os olhos nela pensei que certamente o atrairia, não deu outra. Ops, será que falei demais? ― Ele riu.
― Não tenho tempo para isso. O que você sabe sobre os Profetas do Caos?Maximiliam ficou tenso.
― Vamos ao meu escritório, sim?
Para a sua surpresa o escritório de Maximiliam era limpo e arrumado. Não parecia em nada com o restante do estabelecimento que ele gerenciava.
― Esses malditos se intitulam de profetas, mas não passam de uma milícia armada. Se acham no direito de invadir o meu estabelecimento e tratar mal os meus funcionários. Já proibi a entrada deles aqui e contratei o dobro de seguranças.
― O que os profetas fazem num lugar como esse? ― Helena deixou escapar.
― O meu estabelecimento é para expectadores, ninguém aqui é obrigado a nada. ― Maximiliam se defendeu. ― Mas como eu disse, esse discurso de purificação é apenas fachada a julgar pelos tipos que tentam frequentar o meu espaço.
― Talvez sejam apenas simples peões. ― Will ponderou.
― Não faz nem meio ano que Memphis procurava adeptos para o seu culto. Bateu aqui na porta inclusive. Agora nos olham com ar de superioridade. Ao menos ele encontrou as pessoas que procurava, pobres desesperados.
― Quem? ― Helena não conseguia acompanhar.
― Protetores com baixo nível de magia que não são abençoados com uma família rica e precisam fazer a própria sorte. A maioria vive nas ruas, pedindo uns trocados, roubando... Vai dizer que não notou a diminuição quase drástica dos pedintes em Brascard?
Will negou.
― Faz sentido. São pessoas que não tem nada, nenhuma chance, e de repente recebem dezenas promessas vazias ― Helena ponderou.
― Quem poderia imaginar que a esperança pudesse produzir tanto caos ― Maximiliam refletiu.
A porta do escritório de Maximiliam foi aberta por um dos seus funcionários e atrás dele uma Charlotte descabelada e suada e um Thomas ofegante entrou.
― A festa está completa pelo visto. ― Maximiliam riu. ― Ignoto, uma garrafa de vinho por favor.
― Já estamos de saída. ― Will se levantou, inabalável. ― Se pudermos usar a sua passagem secreta ficarei agradecido. Em nome dos velhos tempos.
― Que não precisam ser velhos tempos, meu amigo. Mas, vá. Já está quase amanhecendo.
Como já tinham descumprido a maioria das regras da Academia, roubar um pouco de gaze e esparadrapo do estoque de Nona não faria muita diferença àquela altura. O quarteto se reuniu no quarto de Helena para se remendar e ela ficou tensa com Will olhando a sua bagunça de livros e suas anotações desconexas sob a mesa.
― O que diabos as duas estavam fazendo em Brascard?
Helena abriu a boca, mas Charlotte foi mais rápida.
― Não é da sua conta, Cardragon. ― Ela estava mal-humorada pela intromissão.
― Salvamos a vida de vocês, então acho que é sim! ― Thomas tomou partido.
― Eu estava resolvendo uns assuntos e Helena me seguiu, apenas. ― Ela explicou.
― Veritax não podem mentir. ― Helena fez questão de acrescentar.
― Mas podem omitir. ― Will sorriu. ― Vocês estão investigando os Profetas do Caos, mas porquê?
As duas se entreolharam e Charlotte deu de ombros, contrariada. O estrago já estava feito.
― Os Profetas do Caos estão sendo financiados por alguém chamado O Príncipe. ― Helena falou. ― Os comícios são meras distrações para algo que eles estão tramando.
― Meros missionários não precisariam de guardas armados. ― Thomas acompanhou o seu raciocínio.
― Não estamos falando de guardas armados apenas. Tinha o arsenal de um exército naquele navio. ― Charlotte mostrou as duas adagas e as entregou para Thomas. Era a adaga que Helena pegou do guarda e adaga do navio.
― Aonde os Profetas do Caos encontrariam lunáticos para lutar com eles? ― Ele entregou as armas para Will.
Will comparou as duas adagas e franziu a testa.
― Maximiliam disse que estão recrutando protetores com baixo nível de magia. ― Will respondeu distraído, ainda comparava as duas adagas. ― Falta a insígnia. ― Comentou.
― Faz sentido. John estava com eles. ― Charlotte contou.
― John?
― Quem é John? ― Will perguntou, irritado.
― John, o mensageiro que conhecemos naquela taberna, como era mesmo o nome? ― Helena forçou a mente. ― Toca dos Desalmados. ― Ela se lembrou.
― Como vocês...? Quando? ― Thomas despejou as perguntas.
― Quer saber de uma coisa? Fora do meu quarto. Eu preciso dormir! ― Helena os despachou com um sorriso.
― Se quiserem eu posso descobrir quem é o fabricante dessa adaga. ― Will sugeriu.
― Corta essa, Cardragon. ― Charlotte negou.
― Do que você tem medo? ― Will interpelou. ― Que eu seja melhor que você?
― Nem cinco minutos de investigação e você já quer dar ordens, típico.
― Vai querer que eu descubra ou não? ― Will reiterou a oferta.
― Não significa que você é o líder da equipe. ― Charlotte lhe devolveu a adaga.
Os três partiram e Helena caiu na cama feliz depois de um banho demorado. Não soube dizer se eles também vislumbravam uma aliança estranha se formando entre eles. Torcia para que sim.
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As Raças Irmãs
FantasyNo país insular de Árcade, sob a égide dos Protetores, criaturas fantásticas convivem numa falsa paz. Após dezoito anos de uma guerra que culminou no exílio de todos os Invocadores, não há quem ouse desafiar a soberania dos Protetores e suas regras...