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Aqueles dois primeiros meses desde o começo das aulas foi uma espécie de benção e maldição.

Benção porque Helena não precisou dividir o quarto com ninguém, graças a benevolência de Althariel, e maldição porque eles ainda sentiam medo que ela se descontrolasse e queimasse metade do lado oeste da Academia.

Não teve sinal do orbe de luz, o que a fez dormir melhor, mas ao invés do orbe espreitando nas quinas do teto, recebia os olhares curiosos e amedrontados dos outros aprendizes. Um misto de benção e maldição.

Estar de volta às salas de aula também não era nada animador. O professor Godofredo Cooper, um senhor gorducho, mas que segundo ele, ainda cabia perfeitamente no seu uniforme de Guardião, lecionava botânica mágica e nutria uma esperança vã que Helena fosse despertar os seus talentos paras botânica tal como Tereza. Coitado! Pelo broto que recebeu para cultivar, ora seco ora molhado demais, ela descartou essa carreira de imediato.

De certo, preferia mil vezes a aula de botânica do que a aula da professora Ella Hopkins, ou melhor, Cru-Ella, como Helena havia apelidado. Havia se atrasado para a primeira aula e isso a deixou marcada no radar da professora para sempre.

Ella detestava atrasos, cochichos, penas coloridas, desenhos no caderno e infinitude de regras que apregoou no mural da sal.

― Senhorita... Crawley. ― Chamou Hopkins para a nova sessão de leituras demoras e perguntas que Helena não sabia responder. ― Poderia nos dizer, por favor, porque Reiko foi tão importante entre protetores do oriente?

Helena se remexeu na cadeira.

― Pensei que estivéssemos no capítulo dois, sobre protetores da história ocidental e seus feitos.

― Gostaria de subir no tablado e lecionar para nós, senhorita Crawley?

― Não, senhora. ― Helena disse entre dentes.

― Qual a importância de Reiko entre os protetores do oriente? ― Ella tornou a perguntar, pausando em cada palavra.

― Não sei, professora.

― Não chegará tão longe com tanta petulância. ― Ella disse

― Obrigada pelo conselho. ― Helena murmurou.

Helena bufou e jogou os pesados livros em cima da mesa na hora do almoço. Diferente da maioria dos aprendizes que tinham tempo livre entre uma aula e outra, ela estava sempre correndo com grossos livrros na mão e montanhas de anotações embaixo do braço.

― Eu juro que não aguentou mais. ― Ela reclamou. ― Fazer matérias em praticamente todos os períodos está me enlouquecendo.

― Você tem se saído muito bem, Helena. ― Susan elogiou.

― Eu já teria enlouquecido. ― Jacob comentou. ― Fiquei sabendo da última da Ella.

― Você é ruim em História e daí? ― Thomas falou. ― Tenho certeza que é ótima em outras matérias. Ah, Cultura Natural!

A garota não se importava em responder as perguntas de Christina Roully durante a aula de Cultura Natural.  A professora de cabelos armados e pele negra brilhante fora de longe de quem mais havia gostado.

― Ela é quase uma natural. ― Era ouviu no corredor um garoto de cabelos castanhos e sobrancelhas grossas dizer.

Brandon Laurel e seu séquito eram serpentes curiosas. Hans Snordel, loiro com sardas, e os primos, Abraham e Katrina Messer, ambos de cabelos pretos e olhos muito escuros, riam toda vez que Brandon atormentava alguém. O alguém da vez era Helena. Ela podia responder à altura, mas um deslize sequer e Mordhor conseguiria o que queria. A sua expulsão.

― Acalme-se e experimente esse aqui. ― Disse Will, estendo o suco verde e gosmento em sua direção.

Will e Thomas insistiam para que ela experimentasse cada comida ou bebida nova e riam das suas reações.

― Tenho certeza que você vai gostar desse. ― Thomas insistiu.

― Parece abacate. Odeio abacate! ― Helena fez uma careta.

― Você faz essa careta para a maioria das frutas. ― Will observou. ― Vai ficar diabética de tanto que come chocolate.

― Não tenho culpa se Brascard tem o melhor chocolate do mundo.

― Odeio chocolate. ― Foi a vez de Will fazer uma careta. ― Prefiro coisas amargas.

― Que refinado! ― Helena zombou. ― Ah, amargo para combinar com a sua alma.

Thomas explodiu numa gargalhada que ecoou por todo o salão de banquete.

― Na verdade eu sou bem doce, o amargo é para compensar. ― Ele bagunçou os cabelos. ― O que me faz pensar que quem deve ser a amarga de nós é você. 

A porta do salão de banquete se abriu num estrondo e interrompeu a conversa alegre. Rufus corria aos gritos com um involucro a mão. Os seus olhos lacrimejavam quando ele despejou o conteúdo na mesa de Ivan.

― O sistema inviolável de mensagem. ― Thomas falou. ― Não usamos desde a guerra.

Helena procurou Charlotte na multidão. A protetora observava os movimentos de Ivan com olhos de raposa. Finalmente, ela captou o seu olhar. A mesma preocupação estampada no rosto.

― Porque ele está chorando? ― Helena observou Rufus ser levado por Nona até uma porta lateral e a imitação estupida de Brandon à gargalhadas.

― Desprovidos não podem tocar em objetos mágicos. ― Thomas explicou. ― Provocam queimaduras severas e podem até matar.

Mora vai ficar arrasada, Helena pensou. Por duas vezes ela os flagrou conversando aos sussurros. Na primeira vez eles não a viram, mas na segunda Mora percebeu e ficou mais corada do que o cabelo ruivo de Rufus.

A suspensão das aulas só fez aumentar o burburinho. Os monitores levaram os aprendizes para as alas privativas de seus signos. Will desapareceu bem atrás de Helena e ela não teve escolha senão seguir a multidão e se instalar em uma das poltronas na sala privativa dos Leões Destemidos com um grosso livro de história no colo.

― Ouvi dizer que vão cancelar a Caçada. ― Olivia Galvin, do sétimo ano, disse.

― Não podem fazer isso! ― Cordélia reclamou. ― Estou esperando há semanas os presentes dos meus pais.

O Dia dos Grãos acontecia na lua cheia seguinte ao equinócio de primavera e era tradição na Academia ocorrer a Caçada, uma corrida atrás de presentes por toda a propriedade. No fim da noite acontecia um banquete ao ar livre com os animais caçados pelos alunos.

A própria Helena encomendou os seus presentes por correio numa famosa loja de chocolates em Brascard. Também aproveitou para encomendar roupas novas e livros, o que só foi possível graças a posse da sua gorda herança.

― Você acha mesmo que podem cancelar a Caçada? ― Ela perguntou a Thomas.

― Minha mãe ia ficar decepcionada. Ela fez vários biscoitos. ― Thomas crispou os lábios. ― Inclusive, tem uma caixa inteira para você. ― Ele falou aos sussurros.

Helena riu. Thomas recebia grossas cartas todas as segundas. Uma da mãe com extensas recomendações, uma do pai a respeito de projetos que ele inventava e três cartas e desenhos das três irmãs mais novas do protetor. Para ela, só chegavam as cartas de negócio de Ernesto.

― Se algo acontecer já temos a quem culpar. ― Cordélia e Olivia olharam para ela.

A protetora bufou e saiu da sala para não queimar aquelas duas até os ossos. Ela trombou com Vince vestindo um uniforme de luta e carregando uma bolsa pesada e dois bastões de madeira.

― Alguém parece ocupado. ― Ela o interpelou.

― Aproveitando o dia livre. ― Ele depositou a bolsa no chão.

― Achei que você pudesse me dizer o que está acontecendo.

― Até os monitores são dispensados de vez em quando. ― Ele sorriu. ― Ouvi dizer que você é boa na Arte da Defesa e do Ataque. Ignácio fez muitos elogios.

A habilidade de brigar na rua era um diferencial. O que o professor Ignácio Paluzzo chamava de instinto de sobrevivência. Ela tinha de sobra.

― Eu sou bem dura na queda.

― Mostra. ― Ele provocou.

Vince entregou um bastão de madeira para Helena quando os dois chegaram à sala de treinamento. Os dois treinaram os movimentos básicos de luta corpo a corpo. As posições de ataque, bloqueio e contra-ataque.

Vince era impecável. Disciplinado e compenetrado, enquanto Helena, ao revés, lutava com raiva e garra.

― Quando você conseguir combinar a sua luta com o seu poder de fogo será implacável. ― Ele limpou o suor da testa.

― Eu não tenho evoluído muito nesse quesito.

O rapaz projetou uma bola de fogo verde luminosa, que brilhou em dourado em seguida. Ele fez a bola levitar sob a sua palma, então a arremessou num alvo de metal na parede próxima.

― Tenta.

O fogo estava lá. Já conseguia alcança-lo mesmo quando não estava com raiva, mas ele não a obedecia. Entre tudo ou nada, preferia o nada. O nada era seguro.

― Eu nunca experimentei em ambientes fechados.

― Não tem porque temer. Se algo acontecer...

― Você não vai poder me conter com o seu poder de fogo.

― Nada vai acontecer. ― Ele se corrigiu.

A magia começou como uma chama crepitante e quente. Verde luminosa e sem forma. Vince se posicionou a sua frente e tornou a fazer as suas esferas de fogo.

Ela invejou aquela capacidade. Só havia conseguido uma vez. Com Will. Aquele pensamento fez as chamas crepitarem de maneira mais intensa e mais forte.

Vince juntou as suas duas esferas de fogo em uma só. As chamas de Helena crepitaram naquela direção como se fossem atraídas para ela.

― Você está no comando.

Helena assentiu e continuou alimentando a esfera de fogo. Ela mal percebeu quando Vince recolheu os seus braços e parou de emanar o seu poder. Naquele momento era somente ela e a sua magia.

A esfera de fogo cresceu e as chamas dentro dela dançaram numa sincronia perfeita. Os seus olhos lacrimejaram e o calor esquentou o seu corpo.

― Acerte o alvo. ― Vince ordenou.

Helena arremessou a esfera na direção do alvo de metal. Ela errou por uns centímetros e atingiu o beiral da porta de madeira.

― Só precisa treinar a pontaria. ― Os dois sorriram.

― Eu me sinto tão... ― Ela não soube descrever.

― Esgotada? ― Ela assentiu. ― Você não está acostumada a usar a sua magia, então custa um alto preço para o seu corpo. Mas com prática você consegue superar um pouco esse efeito colateral.

Os dois ficaram sentados por um momento. Vince experimentou fazer esferas de fogo no ar e projetou colunas e escudos. Quando Helena já estava recuperada os dois voltaram ao treino.

― Porque não podemos treinar com magia?

― Nenhuma magia é ilimitada. Você precisa usá-la de forma dosada.

― Se não?

― Na melhor das hipóteses você entra em coma. Na pior, você morre.

― Vamos treinar combate corpo a corpo.

Helena se posicionou e avançou contra Vince, mas ele a desarmou e a derrubou sob o chão acolchoado. Atrás dele ela viu uma cabeleira preta balançar a cabeça em desaprovação. Will. Ele segurava uma maça suculenta e sorria de forma diabólica.

Helena se levantou e chutou Vince com o joelho. O rapaz mesmo surpreso conseguiu agarrar a sua coxa com força e os dois se encararam por um segundo. Will mordeu a sua maçã com violência.

― Assim você deixa as coisas mais fáceis para mim, Helena. ― Ele advertiu.

Vince atingiu a sua perna de apoio e Helena caiu em cheio no tatame. Will largou a maça no chão e partiu para cima de Vince.

― Qual é o seu problema? ― Gritou.

Helena se levantou e esfregou a cabeça que latejava. Vince segurou o seu queixo de um jeito e examinou o seu rosto.

― Fique longe dela. ― Will vociferou. ― Você não tá vendo que a machucou?

― Eu estou bem. ― Helena discordou.

Quando tentou ficar de pé sozinha, o seu tornozelo lhe traiu. Droga!

― Você não deveria nem estar aqui para começo de conversa. ― Vince empurrou Will.

― Vai saber o que você iria fazer com ela se eu não tivesse aqui. ― Will voltou a empurrar Vince.

Helena se enfiou entre os dois.

― Will, já disse que estou bem. ― Helena repetiu.

― Você mal consegue andar. ― Will reparou.

― Tão dramático...

Ele estava pronto para discordar, quando Twyla enfiou a cabeça pela porta de madeira entreaberta. Helena soube que algo estava errado quando encarou a sua expressão, pois lá estavam eles. O par de olhos repletos de pena e preocupação.

― Pensei ter ouvido gritos. Está tudo bem por aqui? ― Os três relaxaram e concordaram. Twyla semicerrou os olhos, mas deixou passar. ― Helena e Will, podem me acompanhar, por favor?

Helena lançou um olhar de culpa para Vince e partiu com Will, que caminhava de modo irritante ao seu lado.

Antes de entrarem no gabinete de Althariel, Ella bateu a porta num rompante. Mal reparou na presença de Helena ou de Will, quando rumou transtornada pelo corredor.

Algo estava muito errado.

As Raças IrmãsWhere stories live. Discover now