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Helena não viu Will na semana seguinte e não se surpreendeu ao encontrar Vince na clareira naquele dia, apesar da pontada de decepção que mal conseguia disfarçar. Ela já conseguia fazer uma bola de fogo ou algo que se parecia com uma, o que era um progresso, por mais que não conseguisse manter o controle por mais de dois segundos.

— Você melhora a cada dia. ― Vince elogiava.

Charlotte reassumiu o seu posto de parceira de luta depois de receber alta da enfermaria. Desde que Helena descobriu o seu segredo, ou pelo menos parte dele, as coisas estavam diferentes entre elas.

Helena foi direto para o quarto naquela noite. Não era noite de história, pois amanhã naquele horário seria um grande dia. Os criados corriam de um lado para o outro, dando os últimos retoques nas tapeçarias e polindo a última prataria. Amanhã naquele horário a Academia deixaria de ser o seu refúgio ou prisão particular, como ela considerava a depender do seu humor, para ser lar de centenas de aprendizes.

Não era algo que ela estava ansiosa.
Os receios do Conselho Protetor ganharam as páginas do Pergaminho de Brascard e as preocupações quanto à cataclista descontroladas estava lá para quem quisesse ler. Era só questão de tempo até descobrirem sobre Madalena.

Helena pousou o livro de lado e foi até a janela do quarto. A brisa fresca fez os seus cachos balançarem sob as suas costas.

― Um recomeço. ― Ela murmurou para si mesma.

― Pode apostar que sim. ― A voz feminina preencheu o lugar.

Charlote vestia uma túnica azul-marinho da cor da noite e botas longas e escuras. Adagas cuidadosamente afiadas estavam dispostas pelo seu cinto. Ela trançou os cabelos e os prendeu num coque firme.

Linda e mortal. Helena sentiu pena do cara que se metesse com ela.

― O que você está fazendo aqui?

― Você não queria saber o meu segredo?

Helena cavalgou sob o dorso do qilin prateado. Charlotte estava à curta distância. A brisa gelava entrava em seus pulmões e refrescava o seu espirito. Um misto de excitação e ansiedade lhe consumia. Uma fagulha crepitava dentro de si, era o seu poder lhe dizendo que estava ali se precisasse. Ela desejou não precisar.

A estrada de terra batida que cortava a floresta escura se alargou e pouco a pouco as arvores foram se distanciando umas das outras, até serem substituídas por planícies. O vento gelado açoitava o seu corpo e Helena desejou ter usado uma capa e não só a jaqueta de couro.

Você podia se aquecer se quisesse.

― Não é algo que eu possa controlar. ― Ela disse contra o vento. ― A não ser que você queira virar churrasquinho.

Ele relinchou em negativa, mas não se ofendeu. Qilins têm senso de humor, afinal.

Charlotte parou sob a encosta de uma colina e desceu do cavalo. Helena imitou o seu gesto. O qilin dourado foi até um lago cristalino e bebericou da água.

― Fiquem aqui, entenderam? ― Foi tudo o que disse.

― Não acha que alguém podem tentar rouba-los? ― Helena a alcançou na caminhada.

― Não se pode fazer mal aos qilins. São criaturas justas e boas. Digamos que coisas ruins acontecem com quem tenta.

O qilin prateado fitou Helena. Ela viu uma tristeza momentânea naqueles olhos cinzentos. Até mais meu amigo, ela pensou.

A caminhada não durou mais do que quinze minutos. Após uma colina Helena viu as luzes da cidade de Brascard.

― Como isso é possível? Estávamos à quilômetros de distância...

― Qilins. ― Foi a resposta.

Brascard se erguia de uma maneia diferente naquela hora da madrugada. A música abafada e preguiçosa ecoava de tabernas e bordéis. Ao longe homens e mulheres riam e conversavam de maneira despreocupada. Apesar disso as ruas estavam desertas e mal iluminadas.

A garota seguiu todos os passos de Charlotte, enquanto serpenteavam pelas vielas imundas de Brascard. Por duas vezes ela teve de se esquivar de um bêbado ou outro. A protetora seguia a frente calada e sem paciência, até que parou em frente a uma taberna simples, então entrou.

― Toca dos Desalmados. ― Helena leu. ― Que ambiente familiar.

O lugar quente e mal iluminado não estava tão cheio quanto as outras tabernas da cidade, mas ainda assim o cheiro de álcool e fumo era intenso. Uma mulher magricela e ossuda as cumprimentou por de traz do balcão.

Charlotte procurou uma mesa distante e estratégica, então sentou, observando ocasionalmente os beberrões que olhavam de soslaio para as duas.

A garçonete desinteressada deixou dois canecões do que parecia ser cerveja na mesa. Sem precisar de identidade ou algo do tipo. Tão fácil.
Charlotte sorveu a sua bebida e limpou o queixo. Helena experimentou e franziu o rosto para o gosto amargo.

― Melhora essa cara. ― Charlotte vociferou.

― O que a gente está fazendo aqui?

― Esperando uma pessoa. ― Ela deu mais um gole.

Os clientes do bar reparavam nas duas. Eram jovens demais para aquele lugar e Helena não pode deixar de se perguntar se estava na cara que ela era uma protetora menor de idade. Mas não qualquer protetora. A protetora perdida. Ela deu mais um gole na bebida amarga. Que se dane!

Charlotte soltou os cabelos e riu para Helena. Era um truque. Ela chamou delicadamente a garçonete, que trouxe mais uma caneca de cerveja.

― Você é tão óbvia. ― Ela disse em tom arrastado.

― Qual é a razão disso aqui?

Charlotte gargalhou alto e as duas voltaram a ser assunto na taberna.

― Hora do show. ― Charlotte sussurrou.

Um rapaz alto e loiro, cujo rosto era coberto de espinha e vestia um par de calças de couro preta e uma jaqueta surrada, se aproximou.

― Posso pagar uma bebida para as senhoritas?

― Já estou bebendo. ― Charlotte riu de um jeito sedutor.

― A sua amiga não. ― Ele olhou para Helena e seu copo vazio.

O que ele não tinha de beleza tinha de confiança e isso ela precisava reconhecer. Charlotte concordou com um aceno de cabeça e o rapaz se afastou.

― Chega! Que merda é essa? ― Helena sussurrou.

― Só entra no jogo e não faça eu me arrepender de te trazer. ― Ela disse.

As Raças IrmãsOnde histórias criam vida. Descubra agora