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Helena acordou com a sensação de que dormiu demais. Os flashes dos acontecimentos dos últimos dias lhe assaltaram e uma dor de cabeça latejante lhe atingiu. Avistou um jarro de água adornado no criado-mudo ao lado da cama e bebeu dois copos de água até que a sensação de boca seca desaparecesse.

Ela cambaleou ao se levantar e por pouco não caiu. A sua cabeça girou e o chão sob os seus pés tremeu. Por algum motivo a mobília permaneceu intacta ante aquele terremoto.

― Eu estou perdendo a cabeça. ― Murmurou para si mesma. 

A visita do dia anterior lhe exauriu por completo. Nunca mais ia brincar de monta-russa com duendes. Quando chegaram ao Laço do Trasgo já era noite e ela foi direto para o quarto e desabou na cama sem tomar um banho sequer. O que não faria diferença já que as duas únicas mudas de roupa que tinha fediam.

Sacudindo a cabeça e buscando um pouco de ar foi até a sacada. Abriu a porta com dificuldade e tornou a fechá-la num átimo. Um grito escapou de seus lábios.

Estou enlouquecendo, murmurou para si mesma diversas vezes.
Abriu uma fresta da porta e espiou. Viu montanhas rochosas e um desfiladeiro com um rio que ziguezagueava lá embaixo. Helena tomou coragem e abriu a porta por completo. Então, perdeu o fôlego.

A casa estava andando. Grandes pedras despencavam a medida que as pernas de metal da casa perfuravam o solo num movimento que lembrava o de uma aranha.

Distraindo-se, Helena prostrou o corpo para fora e olhou para cima. A casa era feia e desengonçada por fora, porém era enorme. As cinco chaminés soltavam uma fumaça densa e colorida. Não era qualquer casa que andava. O Laço do Trasgo estava andando num tilintar descompensado.

A casa fincou uma das suas patas de metal entre duas grandes pedras e deslizou abaixo por alguns metros. Helena gritou e correu para dentro do quarto, fechando a porta da sacada e jurando que nunca mais a abriria novamente.

Helena correu para o corredor.  Passou por aviso de não perturbe e também por uma camareira desgrenhada, mas nem sinal de Ivan, Will ou Charlotte. Que belos protetores que eram! O cheiro de comida vindo pelo corredor atraiu a sua atenção.

― Duas vezes à esquerda e depois à direita. ― Helena repetiu para si mesma.

O restaurante estava abarrotado de gente e numa mesinha de madeira no canto reconheceu a cabeleira ruiva de Charlotte. Ela passou atrapalhada pelas mesas que fervilhavam durante o café da manhã sem se importar com os olhares curiosos em sua direção.

― A casa está se movendo. ― Helena recuperou o fôlego. ― Está se movendo!

― Sabemos. ― Ivan não tirou os olhos tensos do seu jornal.

― Isso é normal? Quero dizer, estamos em cima de um penhasco agora.

― Vai ofender Vilna se continuar agindo feito louca. ― Charlotte riu do seu desespero.

― Isso é insano. ― Ela repetiu várias vezes.

― Cala a boca e come. ― Will pôs uma cesta de pães em sua direção.

Helena se ocupou em mastigar e só a comida foi capaz de acalmá-la. Só então reparou nos olhares curiosos que recebia. As mesas redondas de madeira gasta eram ocupadas por protetores, duendes, hobbits e até um meio-gigante.

Vilna entrou cantarolando no restaurante e foi logo em direção ao grupo.

― Bom dia, flor do dia. ― Ela rimou. ― Vou preparar um café especial. Não quero a minha melhor hospede passando fome. ― Ela foi até a cozinha animada.

― Porque estão todos olhando para mim? ― Helena sussurrou.

― Você é meio que famosa. ― Charlotte revirou os olhos. ― A protetora perdida é quase uma entidade aqui. Um misto de pena e admiração.

― O fato é que todos querem conhecer você. ― Will interrompeu. ― Charlotte só está com inveja.

― Isso não explica o fato de me olharem como se eu fosse um animal de circo.

― Você não entende? ― Charlotte elevou o tom de voz um bocado e Ivan fez um psiu baixo. ― Ninguém viveu tanto tempo em território natural quanto você. A pobre recém-nascida levada de sua terra natal que inspira confiança e desperta sentimentos protetores de qualquer um. ― Ela olhou para Will por um momento. ― Você é quase uma donzela em perigo.

― E graças a aventura de vocês ontem de manhã toda Brascard já sabe que você está. ― Ivan baixou o jornal sob a mesa.

― Quem é a protetora que traiu os seus? ― Helena leu a manchete. ― Eles acham que eu sou uma traidora.
― E tem mais, fala sobre a prisão de Memphis, líder dos Profetas do Caos, e da atuação dos Guardiões. ― Charlotte continuou. ― Menciona o seu tio, Will.

Will cerrou o maxilar e saiu da mesa de maneira brusca. Helena mal deu atenção já que estava preocupada o bastante com o fato de acharem que a sua família era uma traidora só por terem partido.

― Esse jornal é respeitável? Quantas pessoas acham que eu sou uma traidora?

― O Pergaminho de Brascard é bastante tradicional, mas não é o único jornal que existe. ― Charlotte explicou.

― Você terá tempo de provar o seu valor. ― Ivan assegurou. ― O mais importante agora é você conheça a Academia e comece os seus estudos.

Helena não estava certa se queria aquilo de fato. Concordava que precisava de algum jeito controlar aquele poder que fluía dela quando os seus sentimentos se afloravam, mas a ideia de voltar a estudar não era nada animadora.

Passou a maior parte daquele dia com Charlotte, admirando a vista, enquanto a protetora respondia às suas perguntas.

― Você pareceu bem entusiasmada. ― Helena sorriu, lembrando-se dos Profetas do Caos.

― Eles nunca tiveram tanta força quanto agora. Durante a guerra Memphis e os seus seguidores se recusaram a lutar e ficaram em templos, numa vigília. As pessoas estavam vulneráveis naquela época, entende? Dispostas a acreditar que a fé poderia de fato nos fazer vencer.

― Você não tem fé? ― Helena olhou em sua direção.

― Tenho. ― Charlotte olhou o horizonte. ― Só não vou deixar tudo nas mãos de uma deusa. Acredito que temos que fazer a nossa parte. A questão é que depois que a guerra acabou e a pessoas seguiram em frente, os Profetas do Caos se viram sem rumo e inventaram todo o tipo de bobagem sobre fim do mundo.

Helena deu um meio sorriso. Mesmo a quilômetros de distância de casa algumas coisas ainda eram as mesmas. Afinal, Madalena era devotada e isso não a impedia de ser cruel tal como Memphis.

― O que foi toda aquela loucura de sirenes e guerreiros armados até os dentes?

Charlotte mordeu o lábio, pensativa.

― A Lei Maior Nº 1. ― Disse. ― Não falamos sobre eles. Sequer pensamos neles. Não desde que a guerra terminou há dezessete anos.

Eles. Invocadores.

A proibição só fez aguçar a sua curiosidade, mas não se arriscou em fazer mais perguntas. Não quando sirenes ensurdecedoras e guerreiros armados nada simpáticos podiam brotar do nada.

― Isso não é justo. ― Ela disse num sussurro. ― Eu não conheço a minha história.

― Lá fica a Academia. ― Charlotte apontou para o horizonte.

As Raças IrmãsWhere stories live. Discover now