30. Acreditar

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Vitória

- Ela convive com a doença há mais de 30 anos, mas pelo o que ouvi do Luiz agora está um pouco mais 'tranquilo'. Com o diagnóstico exato, ela conseguiu equilibrar suas defesas e assim ter uma condição de vida melhor, mas cheguei a presenciar umas crises bem pesadas. Quando a gente ama alguém não quer vê o sofrer né? E nessas horas meu coração ficava do tamanho de uma grão de tão apertado, ela chorava e se contorcia de dor, enquanto seu organismo estava em guerra com ele mesmo e nós ali, parados e inúteis diante dos gritos de dor. Teve um tempo que cheguei a pensar que ela não resistiria, as crises eram tão constantes que praticamente estávamos morando no hospital, mas ela não se deixou abalar, Elisa sempre lutou e luta até hoje pela vida, o que me enche de orgulho, sabe? Ela é uma mulher muito forte, eu certamente não teria toda essa coragem. Não que viver não vale a pena, viver é magnífico, mas conviver com o lúpus é um caminho tortuoso e solitário demais.

- Mas vocês sempre estiveram ao lado dela, não vejo o porquê ser solitário.

- Nunca sabemos realmente o que o outro sente Vi. Claro que sempre tentávamos nos fazer presente e ajudá-la da melhor forma possível, mas só quem passa, só quem realmente tem a doença e vive diariamente essa dor, sabe o quão difícil é. Elisa muitas vezes negava o que sentia Vi, tentava se fazer presente nos momentos em que estávamos juntos, ela queria uma vida normal ao lado do filho e do marido, mesmo sentindo fortes dores se mantinha por perto só pelo prazer de estar com a família. Não consigo nem imaginar o quanto ela sofreu calada em vários momentos só para não interferir diretamente na vida da família.

- Eu entendo Ninha.

- É tão frustrante não poder fazer nada, me sentia muito mal no começo ao vê-la sofrer e não poder ajudá-la. Mas sabe o que é pior do que a frustração? O comodismo, Vi! É horrível dizer isso, mas com o passar dos anos, me acostumei com aquela situação. No começo era sempre muito difícil, mas depois comecei a lidar melhor com as circunstâncias e é como se aquilo já não fosse mais tão relevante, sabe? Claro que faria de tudo pra ajudá-la em um momento de crise, mas se tornou mecânico, não espontâneo.

Será que existe uma barreira entre a generosidade e a submissão? Eu escolhi fechar os olhos no exato momento que decidi ficar naquele apartamento com Ana Clara, abri mão de algumas convicções e até mesmo de toda a minha teimosia taurina para partilhar de um momento único por nós duas.

Ana carrega consigo uma bagagem pesada de se enfrentar. Ela tinha um casamento que tinha tudo para ser o famoso 'até que a morte nos separe', mas o mesmo acabou antes do imaginado por qualquer um. Com uma vida nova e promissora na cidade grande, várias descobertas, o ganho de uma nova família, ensinamentos, reconhecimento no meio profissional e um futuro brilhante ao lado de uma promessa entre os mais jovens advogados de São Paulo, Ana Clara podia ter tudo aquilo que a grande maioria dos jovens em formação deseja. Mas, no entanto está aqui, admirando pela janela do meu carro, o prédio que um dia foi a morada da sua família perfeita e tradicional.

- Será que tô fazendo a coisa certa, Vi? Será que esse é o melhor caminho? Não digo pela separação, porque disso eu não tenho a menor dúvida, mas a Elisa, o Luiz não sei se eles entenderiam o meu lado em toda essa situação e não quero ser responsável por uma suposta crise dela.

Não é o que você sente e sim como você sente que faz a diferença. Como você deixa o sentimento chegar e afetar a tua vida? Como você lida com as questões que vão surgindo e de alguma forma, vão te modificando tanto pro bem quanto pro mal? Reorganiza todo o seu sentir ou simplesmente joga tudo para de baixo do tapete?

Buscamos rotas inconstantes para não pensar no consistente porque olhar pra si mesmo é bem mais complicado do que muita gente pensa. Temos a tendência ilusória de fugir da nossa realidade, o que não é todo mal, porque as vezes se faz necessário, mas o coração sempre esbraveja enquanto a mente silencia e na hora de se tomar certas decisões deixar que ele nos dê a direção é o melhor caminho.

Acredito que o amor tem muito disso, ele sobrevive neste sutil fio de conversação, se balançando entre a boca e o ouvido, o corpo e a alma, a razão e a emoção. Se entregar ao amor na verdade é se atirar as cegas de um precipício, é lamentar uma dor e ao mesmo tempo continuar querendo mais dela, é viver as emoções na linha tênue do que faz ou não bem para os seus sentimentos e é abrir mão de todos eles ou vive-los todos de uma vez. Quando se ama, vive a insegurança, respira todas as certezas e explica o inescapável apenas com um só verbo, é aprendizado e ensinamento. E tudo porque o amor é a dor e a partilha mais penosa e sem compreensão que vamos experimentar.

- Escuta a voz do teu coração, Ninha! Ele vai lhe trazer a resposta!

- Acho que meu coração não quer falar muito.

- Ele sempre fala, tu só precisa saber ouvir,  ou só estar aberta a aceitar. Não pense se é errado ou certo, se vai valer a pena ou não, se vão entender seus motivos ou te criticar. Tu é mais que julgamentos e como me disse ainda pouco, nunca sabemos realmente o que o outro sente, então seja a sua verdade independe do que virá do outro lado.

Faz parte de todo e qualquer aprendizado lidar com os ganhos e as perdas.. mas como estamos sempre buscando por aquilo que está além de onde a mão alcança, somos testados o tempo todo. É preciso saber até onde se pode ir e não só com relação a si, mas também ao outro. Ultrapassar os espaços, lidar com os porquês, aceitar os fins, respeitar as opiniões, tudo isso custa um preço alto no final, se não for muito bem trabalhando no começo.

Sempre mantive minhas esperanças em coisas pequenas e não por medo, mas sim uma certa cautela. Quando se espera grande, se frustra mais na frente e a dor da frustração é tão dolorida quanto da insegurança. Eu não queria está sentido tudo isso, não queria está parada na frente desse prédio esperando a hora em que Ana Clara saia do carro e entre em um mundo tão familiar pra ela, pode até ser um pouco de egoísmo da minha parte, mas é tudo muito novo e confuso ainda.

É difícil lidar com ausências e com términos daquilo que jurava ser pra sempre, Ana vai abrir a porta do conhecido para se deparar com o inesperado e só o universo pra saber como ela sairá de lá. É louvável a atitude de uma conversa adulta e civilizada, mas ao mesmo tempo é desafiadora demais. 

- Acho que tá na hora de ir. - Seu olhar é a própria mistura de medo e insegurança, sua pele fria como gelo, seu pé inquieto balança feito os de uma bailarina repassando a coreografia antes de subir no palco, as mãos trêmulas que mexem e remexem no cabelo sem parar e um sorriso tímido e apreensivo querendo assim negar pra ela mesma que tá tudo bem. -  Obrigada por ter vindo comigo Vi.

- Eu posso vim te buscar, se tu quiser.

- Não precisa, não sei que horas esse jantar vai acabar e pode ficar muito tarde pra você.

- Isso não é problema Ninha.

- Eu sei, mas não se preocupa. Assim que acabar eu chamo um táxi e quando chegar em casa eu te ligo, tá bom?

- Tudo bem, então.

- Obrigada!

- Vai dá tudo certo.

- Vai dá tudo certo!

Todos temos medos de perder, medo de tomar decisões erradas, receios de dá um passo falso no caminho longo que é a vida, mas do que adiantaria uma jornada perfeita? Não estamos aqui para ser exemplos de perfeição e gratitude. Erramos, caímos, choramos e lutamos, faz parte da vida os erros e acertos e foi entre esses caminhos tortuosos que encontrei ela, meu coração se enche até se derramar e se derrama pra encontrá-la e o tanto que tenho orgulho dela é algo imensurável. Mesmo com medo e receosa, ela se dispõe. Ana Clara enfrenta os maiores leões por aquilo que acredita, e mesmo que venha a sofrer por isso ela mergulha de cabeça.

Minha alma sempre teve pressa, mas com Ana eu desacelero e caminho ao seu lado. Mesmo com o peso nos ombros, com a insegurança ferindo e com o medo de deixa-la ir e isso machuca-la sem tanto, eu sigo com a certeza das escolhas. Sempre tive medo de perder um amor que nunca chegou a ser realmente meu, agora que vivo um feito por mim e pra mim, não vou deixar que nada atrapalhe, e assim, com um beijo suave e demorado, Ana saiu do carro em direção ao seu antigo/novo apartamento e eu fiquei ali a admirá-la e me certificar do quão forte ela também é.

É preciso esse confiar e esse sentir juntas, tanto daqui como de lá, e ela bem sabe que estamos sintonizadas no nosso nós!











"O medo de perder é corrosivo.. Não se auto destrua por conta dele."

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