II: O Lamento dos Mortos

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A noite era a mesma que um rapaz voava em seu dragão. Ali, à beira da praia, em meio ao cântico das ondas, uma pessoa corria. A areia dificultava o movimento, assim como a barra da grande túnica preta. Chegando em um paredão de pedra, o qual delimitava o fim da praia, a pessoa procurou por uma pequena passagem. Sem tempo, ela se apertou pela abertura e entrou em um corredor, que levava a um lance de escadas, que parecia descer até os confins da terra.

Os degraus eram molhados e escorregadios, e o caminho iluminado por tochas, as quais reluziam chamas azuladas. De repente, a pessoa parou em frente a uma porta de metal, onde, bem no meio dela, estava encravada o mesmo rosto humano que sua máscara imitava. Um rosto sereno, quase adormecido.

Parada ali, a pessoa estendeu as mãos em direção à porta. Na palma da mão esquerda, uma chama azulada, idêntica às das tochas, começou a tomar forma. Em seguida, a pessoa falou, revelando-se então uma mulher:

— Que os mortos me deixem entrar, pois eu sou seu guia.

Com isso, o rosto gravado na superfície emitiu uma luz azulada e o barulho de engrenagens ressoou por toda a extensão da porta. Assim, o rosto se dividiu em dois, no momento em que a porta se abriu, revelando mais lances de escadas que desciam.

A mulher rapidamente continuou seu caminho, iluminando os próximos degraus, com a chama que ainda queimava em sua mão. Não demorou muito, e ela chegou em um salão oval, onde velas se estendiam por toda a parede, e onde as mesmas chamas azuis teimavam em queimar. No centro do salão, um círculo era formado por sete cadeiras de pedra, todas parecendo tronos. Voltados para a fogueira no centro, seis pessoas já se encontravam sentadas, todas vestidas como a mulher recém-chegada.

A mulher se aproximou do círculo, estendeu a mão esquerda e a chama conjurada voou em direção ao fogo central. Assim, ela se sentou na única cadeira disponível e, imediatamente, um homem de voz cansada começou a falar:

— Ele nos descobriu e virá essa noite. Devemos abandonar o local, mas levaremos conosco o que ele tanto quer.

— Eu disse que deixa-lo ir foi um erro. O garoto nunca foi bom da cabeça — essa era uma voz fina e trêmula, de uma mulher de idade avançada.

— Por isso, devemos consertar nosso erro... — o homem parou de falar, como se algo o tivesse interrompido — ... ele já está descendo as escadas.

— Não podemos usar o artefato contra ele? Isso acabaria com o problema de vez.

— Não, minha querida, nós não matamos ninguém. Esse não é nosso papel. A adaga deve chegar nas mãos certas, no momento certo. É o que os mortos me pediram, em meio a seus lamentos.

O homem se virou para a recém-chegada e então continuou:

— Eda, você é a mais nova entre nós. Então, por ser mais ágil, você deverá pegar o artefato e correr daqui. Encontre abrigo na realeza, minha irmã saberá o que fazer.

— E nós ficaremos aqui, esperando a morte? — a mesma mulher da voz trêmula voltou a reclamar.

— Lembre-se porque usamos essas máscaras. Nós sempre estivemos rodeados pela morte, essa não será a primeira vez. E se nós formos embora hoje, outros irão entrar em nosso lugar, eventualmente. Mas, nem todos devemos perecer aqui. Por isso, Eda, vá agora, pois ele já está descendo.

Assim, Eda se levantou e, fez uma longa reverência ao senhor. Logo ela sumiu por um corredor ao fundo do salão, deixando os outros seis, que permaneceram sentados. Assim, alguém mais entrou naquele salão sombrio. Era um homem em seus trinta anos, tão belo como o azul de seus olhos. Os cabelos negros, quase raspados, se misturavam com a barba farta. O porte físico, austero, era coberto pela jaqueta de couro:

— Ora, vocês estão todos aqui, sentadinhos — ele logo se aproximou do círculo, o que fez alguns de seus ocupantes se encolherem. — Pensei que estariam espalhados por sua toca.

— Nós não tememos você — quem disse foi o mesmo homem de voz cansada.

— Você talvez não, mas os outros... — o homem colocou a mão no ombro de um dos presentes, que tremeu em seu assento — ... acho que não são tão corajosos assim.

— O que você veio fazer aqui? Nós já não te demos a vida? — a mulher de voz trêmula tentou ser corajosa.

— Sim, vocês me deram a vida, por isso eu vim buscar a adaga, para que eu permaneça com essa vida.

Eda voltou ao salão, trazendo uma caixinha de metal. A mulher estacou no momento que viu o intruso:

— Ótimo, pensei que seria mais difícil — o homem foi até Eda, mas foi parado pelo líder daquelas pessoas, que se levantou de seu assento e se pôs em seu caminho. — Isso é meu. Eu vim com isso para cá.

— Não podemos deixar você ir embora com isso.

— Então, eu vou tomar a força.

Do nada, uma corrente saiu de dentro da manga da jaqueta do rapaz, e enforcou um dos mascarados, que estava se aproximando por trás dele. A pessoa foi levantada em pleno ar, sendo sufocada pelo metal, que apertava cada vez mais seu pescoço. Porém, tão subitamente quanto o aparecimento da corrente, seu corpo foi tomado por chamas azuladas. A pessoa gritava de dor, enquanto o intruso se divertia com seu sofrimento:

— Eda, corre! — ordenou o homem de voz cansada.

No mesmo instante, Eda obedeceu, porém, outra corrente foi em sua direção. Entretanto, antes que essa chegasse a tocá-la, outro membro daquela ordem se jogou em cima, tendo o corpo imediatamente tomado por fogo azul.

Assim, aquele que aparentemente era o líder do grupo, levantou os braços. De todos os lados do salão, caveiras começaram a aparecer. Elas cavavam seu caminho pela terra e, assim que estavam livres, corriam em direção ao rapaz. Esse, se protegia com as correntes em chamas.

— Você não pode fazer isso, Caio, não pode usar o fogo dos mortos assim.

— Esse não é meu nome! — o rapaz então liberou uma onda de fogo azulado, a qual queimou algum dos encapuzados e acabou com todas as caveiras.

Assim, o rapaz foi até à saída, mas uma enorme pedra tampou a passagem. Ele se virou. Com dificuldade, o único sobrevivente lutava para ficar em pé. A máscara não mais cobria seu rosto, revelando assim um senhor de pele negra e enrugada, de expressão tão exaurida quanto sua voz:

— Pense no que você irá fazer, Caio.

— Eu já disse que esse não é meu nome!

— O que você quer? Quer matar a minha irmã?

— Eu não ligo para a Rainha e nem para a realeza. O que eu quero extrapola eles.

— Pensei que você era um jovem promissor. Que iria ser... — o homem foi interrompido, quando uma corrente começou a apertar seu pescoço.

— Eu sou promissor. O meu futuro será grande! Eu sei disso!

O senhor então foi engolfado em chamas, morrendo em poucos segundos. Assim, a pedra que bloqueava a saída, se desfez e o rapaz saiu correndo em direção aos degraus.

Eda já estava na praia, quando uma corrente passou raspando por seu rosto. Quando se virou, viu que o intruso já a havia alcançado:

— Me entrega a caixa e te deixo viver!

Eda não se abalou, continuou correndo enquanto proferia algumas palavras. De repente, um portal se materializou à sua frente. Ela não perdeu tempo e o atravessou, bem no momento que uma corrente tentou investir contra ela.

— Eu ainda vou te achar! Não tem como você escapar do Anjo!

Assim, o Anjo, como se autoproclamou, ficou gritando na praia vazia, já que o portal havia se desmaterializado. 

Os Guardiões: Parte I - Correntes de FogoWhere stories live. Discover now