[02] Nuit grise

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"A consciência é uma pequena
lanterna que a solidão
acende à noite."
— Madame de Staël

"—  Madame de Staël

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devaneios por _emmagrant

#DomineTeuMestre 🥀

Meus olhos pareciam ter cem quilos a mais, ambos recusavam-se em tentar abrir por conta do sol forte que torrava sem dó o meu rosto, como uma linguiça na brasa. Ao trincar meu maxilar, as pequenas pedras de poeira amargaram meu paladar, fazendo-me cuspir por todos os lados enquanto mexia a cabeça; tampei a visão com a mão, permitindo analisar a cena diante dos meus olhos: Dezenas de curiosos estavam em minha volta, assim como estavam em volta do corpo da jovem prostituta que permanecera estirada ao chão.

Todos olharam com espanto para minha face — confesso não ser metade da beleza que costumo compor durante os dias, quando acordo, porém, não era para tanto. Eram caras de puro pavor, havia até uma senhora com as mãos nos lábios, parecendo atordoada.

Quando fiz o mínimo de esforço para levantar, meu pescoço latejou, puxando toda a carne do local para o centro que, naquele instante, ardera em brasa. Levei a destra até o ponto dolorido, tentando afagar um pouco do incômodo, contudo, nada conseguia acabar com a ardência emanada ali.

— Jeon-ssi! — berrou a voz esganiçada entre a multidão de fofoqueiros, saltando por entre a muralha de pessoas, até surgir em minha frente com o rosto pálido e magro, os cabelos negros desgrenhados na cabeça e as bochechas levemente vermelhas, que acompanhavam sua respiração completamente ofegante. Seokjin, que estava com a faceta de um desesperado, ficou ainda mais, quando notou a quantidade de sangue em minha vestes. Veio do mesmo modo até mim, forçando bruscamente meu braço a erguer-se; jogou o mesmo contra seu ombro e equilibrou meu peso com sua mão, arrastando-me desengonçado entre a multidão. Todos continuavam a olhar nossos passos, acompanhando-nos. Não iríamos deixar de ser o centro das atenções dentro daquela cidade abarrotada de fofoqueiros.

Durante a caminhada até o cavalo, nenhum olhar deixou de ser voltado para meu pescoço ferido e sangrento; todos sabiam que havia um sanguessuga pelas redondezas, assombrando as casas e bebericando os sangue de mulheres. Porém, um homem havia sido sua primeira vítima. Vítima esta, que vinha a ser eu.

— Crê em Deus pai! — esbravejou o Kim quando finalmente ajudou-me a subir na sela e analisou meu ferimento com a ponta de seus dedos longos. Estalava a língua no céu da boca, de segundo em segundo, puxando o ar como se estivesse sentindo a minha dor. Apenas revirei os olhos e afastei sua mão dali. — Iremos dar um jeito nesse ferimento... — prometeu. — Não se preocupe, Jeon-ssi — disse confiante, antes de proferir um tapa na traseira do robusto cavalo amarronzado.

Poucos segundos depois, estávamos tomando o rumo do arrozal; porém, minha mente martelava com alguns lampejos da noite anterior. Nem ao menos apertando bem os olhos, conseguia recordar-me de cenas completas. Conseguia ter apenas a visão dos olhos escarlates que brilhavam com a luz cinzenta do luar.

À noite a mordida não parecia doer tanto, agora meus ossos latejavam mais que de costume. Eu me arrastava pelos cantos da enorme mansão do arrozal, resmungando como um velho até encontrar o conforto de minha poltrona avermelhada em cetim; a pouca luz do entardecer caía entre as frestas das longas cortinas do salão. Meu corpo caiu sobre o estofado confortável, afundando ali como uma tartaruga em seu casco.

Em noites como aquelas, eu costumava ficar horas aos pés de Hyun, enquanto ela estava sentada nesta mesma cadeira, sentindo apenas as carícias de seus dedos em meus cabelos, fazendo-me adormecer entre seu colo e a barriga inchada da gravidez.

O fogo queimava a lenha de forma rápida, vibrando em um escarlate vivo; tão vermelho quantos os olhos do demônio da noite anterior. Esfreguei as mãos no rosto, amassando os olhos contra as palmas; batia ambas contra minha cabeça e bagunçava meus cabelos, tudo para conseguir lembrar ao menos de algo sobre aquela noite.

Não era possível que a pancada que havia dado no chão, tivesse me feito perder a memória; também não poderia acusar a idade, meu pai ficara senil com seus sessenta anos, faltavam algumas primaveras para eu também conseguir chegar lá.

Devo ter ficado parado como uma estátua durante algumas horas, deixando a respiração inflar minhas narinas, pois quando notei, a lua estava cheia e iluminava todo o espaço com a luz cinzenta.

E como em um passe de mágica, meu corpo não doía mais. Nenhuma articulação parecia inchada, as dores de antes desapareceram instantaneamente assim que o primeiro brilhar da lua tocou os meus sapatos lustrosos.

Ergui-me vagarosamente da poltrona, analisando de forma diferente o enorme salão de tons marrons e vermelhos; a pouca luz que vinha das velas, tremia as sombras das formas dos móveis de madeira, os quadros brilhavam em uma tinta óleo perfeita, pareciam que tinham vida.

Meus dedos tocaram cautelosos na vidraça da enorme janela de bordas douradas, arrastando a epiderme pela única fresta; desloquei os dedos até a trava que as prendiam e, com um único movimento deixei o ar gelado da noite invadir todo o cômodo, remexendo todas as cortinas dali, assim como meus cabelos que se debatiam como chicotes contra meu rosto.

Tomado pela estranha força da noite, debrucei-me no batente da janela para observar ainda mais a beleza sublime do céu coberto de estrelas minúsculas. Olhei um pouco para baixo, a altura era suficiente para fazer uma boa fratura nas pernas; porém, algo dentro de mim palpitou forte, batendo contra meu peito e fazendo-me, num impulso, saltar em queda livre até o enorme gramado que rodeava toda a mansão do arrozal.

Quando cheguei ao solo, não sofri uma única dor nos músculos. Tinha ainda a enorme vontade de correr em direção à branquitude do luar; era como uma imã, tão forte que me puxava pelas pernas até a sua direção.

De repente, meu pescoço lateja, arde e repuxa, não como durante a amanhã; era como se todo o meu corpo estivesse em brasa, queimando de dentro para fora. Ao longe conseguia ouvir gritos esganiçados — acredito que tenham sido proferidos por mim enquanto contorcia-me de dor no local de minha queda.

E novamente fui dragado para um sonho sem imagens. A enorme tela negra com a voz sussurrante ecoando em todos os cantos.

Não, não estava suficiente de morte pra mim; desejava que a minha chegasse durante aquele sonho, porém, sabia que jamais chegaria.

DRINK FROM ME ༌ JIKOOKOnde histórias criam vida. Descubra agora