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Não que Mikoto nunca tivesse visto um cadáver, pois como miko assistente do santuário de Iruka, acompanhara Megumi-sama em várias cerimônias fúnebres, mas nenhum dos mortos que ela ajudou a velar se encontrava num estado remotamente parecido com aquele. Ensanguentados, alguns desmembrados, mas todos com a mesma expressão de medo congelada em seus rostos.

-- Oh, céus – Yukio balbuciou e puxou Mikoto pelo ombro para junto de si – Não olhe, senhorita.

Ela não conseguia desviar o olhar do rosto do homem à sua frente, cujos olhos vazios encaravam-na de volta. O rapaz desviou a luz do celular e ligou para o navio.

-- O Santuário Vermelho foi atacado, todos aqui estão mortos – ele tentava falar, mas seu pânico dificultava a coerência das palavras.

Mikoto desviou-se do sacerdote morto e dirigiu-se à entrada do prédio, tinha a impressão de que não estava vazio. Apertou os olhos, sem enxergar nada além do breu em seu interior. Devia haver um interruptor em algum lugar, ela começou a tatear pelas paredes.

Outro calafrio percorreu sua coluna, mais forte dessa vez, no mesmo instante em que uma luz acendeu no meio do salão, fantasmagórica como os olhos do bakeneko, e iluminou o recinto ocupado por um gato do tamanho de um tigre, exibindo uma fileira de dentes pontiagudos e ensanguentados.

O youkai felino pulou sobre Mikoto, que se atirou ao chão e levou a mão ao bolso, de onde tirou um ofuda guardado de uma das sessões de treinamento. O gato voltou-se na direção dela para uma nova investida, e ao dar o bote, Mikoto apontou com o talismã de papel:

-- Neve!

Uma enxurrada de neve acertou o bakeneko quando ela estava a centímetros de Mikoto e o arremessou para trás, mas sua pata acertou a mão da jovem. O ofuda fugiu de seus dedos ao mesmo tempo em que a bola de fogo azul se apagou, e o interior do jinja novamente mergulhou nas trevas.

Sem encontrar o talismã, Mikoto correu para fora e quase esbarrou em Yukio na entrada. Agarrou seu braço e o puxou.

-- Corra!

Ele tropeçou num dos corpos e Mikoto precisou ajudá-lo a se levantar, e àquela altura o bakeneko já saíra do templo, coberto de neve e com ainda mais fúria nos olhos. Mikoto e Yukio correram para as escadas a toda velocidade.

O gato youkai pulou na frente dos dois e derrubou Yukio com um movimento brusco da cauda. O rapaz caiu inconsciente no mesmo instante, então o bakeneko voltou a atenção para Mikoto. Ela procurou por mais algum ofuda no bolso, mas não havia nenhum.

Só restou correr de volta para o jinja, em cuja entrada outro bakeneko esperava, este com duas caudas e uma aparência ainda mais sobrenatural, um nekomata.

Mikoto estava tão assustada que nem tremia mais, cada músculo de seu corpo estava rígido como pedra, e tinha certeza que aquele era o fim. O nekomata pulou sobre ela.

Uma luz azul brilhou em seu peito e os dois youkai recuaram, ofuscados. A cor não era o mesmo azul fantasmagórico que os olhos dos gatos, era um azul celeste, que também iluminou um gohei no chão junto a seus pés, sem dúvida pertencente a um dos sacerdotes.

Mikoto o pegou e imediatamente veio à sua mente uma oração que Megumi-sama ensinara-lhe quando criança, para afastar maus espíritos. Ela não sabia se realmente funcionaria com os gatos youkai, mas não havia muito mais opções do que fazer.

Começou a entoar o cântico enquanto dançava, o gohei erguido, desejando ter um suzu para acompanhar o ritmo. Os gatos bufaram e se afastaram ainda mais dela, e a luz da pérola ficou ainda mais brilhante.

Perto do final da canção, eles correram assustados para dentro do templo. Mikoto terminou a oração, mal contendo o alívio por estar viva, mas não era hora de comemorar. Ainda não estava fora de perigo, e precisava acordar Yukio antes.

-- Yukio – ela se agachou ao lado dele e o sacudiu sem gentileza – Acorde!

-- O que deu em vocês? Parecem gatinhos assustados – uma voz feminina irritada arrepiou os pelos da nuca de Mikoto. Yasha saía do templo.

Mikoto sacudiu Yukio com mais força, sem tirar os olhos da mulher, que acendeu as lanternas ao redor do prédio e olhou para a menina com surpresa, depois raiva, e terminou com um sorriso de satisfação. Isso serviu apenas para Mikoto ficar mais assustada, e Yukio só começava a se mexer, gemendo.

O olhar de Yasha repousava sobre a pérola no pescoço de Mikoto, ainda exibindo algum brilho. Ela passou por cima dos corpos despreocupadamente, como se os gatos youkai postados obedientemente atrás dela não fossem uma visão perturbadora o suficiente. Mikoto ergueu o gohei novamente.

-- Sua canção para espantar fantasmas não funciona comigo. Sou tão humana quando você, só que muito mais poderosa.

O chão ao lado dela se tornou negro como no palácio, e daquele buraco escuro brotou uma criatura do tamanho de um urso, mas que na verdade era um texugo gigante. Ele arreganhou os dentes, muito maiores que os dos gatos, e Mikoto sabia que a oração usada para se proteger deles não funcionaria nesse caso.

O mujina avançou a passos pesados, mas foi barrado por uma coluna de chamas que surgiu à sua frente. Mikoto ofegou, achando por um momento que fosse obra de Yasha ou dos bakenekos, então viu que alguém surgira na escada.

Sayuri, ofegante, segurava um ofuda que apontava para o mujina. Atrás dela vinham Takako, Kurono e outros da tripulação do Genbu, todos boquiabertos com a visão dos youkai.

Yasha também parecia surpresa, alternando o olhar entre Mikoto e as duas primas antes de ordenar ao mujina que as atacasse.

O texugo avançou contra Sayuri e Takako, auxiliado pelos dois gatos. As miko conjuraram mais kami e os guarda-costas sacaram armas de fogo, mas as balas pareciam não fazer nem cócegas no mujina. O fogo de Sayuri também não afugentava os bakenekos, e Takako conjurou raios que preenchiam o escuro da noite com uma luz fulgurante.

Mikoto ajudou Yukio a sentar, ainda um pouco desorientado, e tentou puxá-lo para mais longe do embate mágico. Agora amaldiçoava seu tamanho e a falta de força, se ao menos tivesse o tamanho de Takako, poderia fazer algo mais para ajudar.

Yukio mal se erguera nos cotovelos e Mikoto de repente foi atirada ao chão. Yasha se erguia acima dela com uma expressão de puro ódio, e tirou das dobras do quimono uma pequena espada, com uma lâmina de trinta centímetros de comprimento.

Mikoto tentou levantar e foi dolorosamente impedida pelo pé de Yasha, que a prendeu ao chão. Sayuri viu a cena e correu em auxílio da menina, mas o nekomata se interpôs em seu caminho e lançou mais bolas de fogo.

Yasha apontou a tanto no peito de Mikoto, que ainda se debatia inutilmente. A lâmina desceu.

E parou a centímetros da jovem, que não conseguiu tirar os olhos dela. A mulher recuou cambaleante, a mão livre segurando o lado da cabeça e grunhindo por entre os dentes cerrados. Ela parecia sentir muita dor.

Os youkai perceberam a alteração dela e abandonaram a batalha, recuando para junto da mestra. Sayuri correu atrás deles, mas o nekomata ergueu uma parede de fogo azul no caminho. A mulher e os monstros desapareceram na noite, mas não sem antes o mujina acertar as garras no telhado do jinja e parte do teto desabar.

A barreira de fogo se desfez e a montanha mergulhou novamente nas trevas. A equipe procurou por toda a área sem nada encontrar, e uma vez certificado que não havia mais perigo, as duas primas foram verificar o estado de Mikoto.

Ela ainda estava no chão, e Yukio sentado a seu lado, era a imagem da preocupação. Sayuri e Takako temiam o pior ao perguntar:

-- Ela está bem?

-- Não sei, Yasha quase a matou, ela tinha uma tanto.

À luz da lanterna de Sayuri, Takako examinou a jovem, e não encontrando nenhum ferimento ou mancha de sangue, constatou com alívio:

-- Ela está bem, apenas desmaiou de susto.

O Conto da Donzela do SantuárioHikayelerin yaşadığı yer. Şimdi keşfedin