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Todos, inclusive a própria Akumi, olharam paralisados a lâmina que penetrava o torso peludo, mais especificamente para o ofuda colado a ela.

-- Você usou o kami da morte – Takako verbalizou o pensamento de todos, e a insatisfeita incredulidade que sentiam.

Mikoto puxou a naginata e Akumi desabou, respirando com dificuldade. O ferimento começava a escurecer e os pelos ao redor se pulverizavam, cinzentos.

-- Os youkai que morreram em Shiro viraram cinzas na hora. Por que ela não? – Haku pensou alto. Akumi bufou.

-- Não me compare a aqueles peões selvagens. Não vou cair tão facilmente quanto eles.

Mas era claro que ela não resistiria por muito mais tempo, agora quase todo o seu tronco estava como que queimado, e suas patas e caudas escureciam também.

Yasha ficou de pé desajeitadamente, uma das mãos pressionando a ferida de dentes no pescoço, e falou com a voz rouca:

-- Parabéns, maninha, você matou o monstro.

Akumi soltou um estranho som ofegante que depois Mikoto reconheceu como uma risada.

-- Minha morte não é motivo para vocês comemorarem. Fui eu quem manteve este lugar seguro por todos esses anos.

-- O quê? – Sayuri murmurou.

-- O mundo youkai é povoado por feras selvagens que há séculos estão famintos por carne humana. Como acham que poderíamos ter criado humanos aqui sem alguma proteção? – ela riu fracamente mais um pouco – Sou eu quem sustenta uma barreira em volta deste castelo. Sem mim, eles avançarão sobre este lugar, e vocês serão devorados imediatamente.

Todo o seu corpo tornou-se negro e se desintegrou, restando só uma pilha de cinzas.

-- O que ela disse era mentira, certo? – Haku perguntou receoso após um breve silêncio coletivo. Ainda rouca, Yasha respondeu:

-- Improvável, apesar de ela nunca ter sido de confiança.

-- É verdade, eu a ouvi falando com Ikari sobre isso uma vez – Ame parecia assustado. Takako decidiu.

-- Então vamos. Agora!

Yasha estava mais adiantada do que ela, já desaparecendo porta afora. Ao longe, surgiram ruídos familiares de ossos que se batiam, rugidos e urros.

Todos correram a toda velocidade, cada barulho suspeito vindo de fora os impulsionava a ir mais depressa. Quando deixaram o castelo, viram de relance as montanhas que o cercavam e o céu acima delas já ocupados por youkai.

-- Passem para o outro lado! Depressa! – Yukio parou junto à porta e esperou todos atravessarem – Vamos, Mikoto!

Ela estancara a um metro da porta, e olhou por cima do ombro para o castelo. Akumi e Ikari não eram os únicos youkai inteligentes, havia outros por aí, e com certeza mais poderosos. Não havia como saber quando seria a próxima tentativa de quebrar o selo, ou de que forma ela se faria.

A única certeza era que aconteceria outra tentativa, fosse dentro de dez anos ou vários séculos. Mesmo com os youkai isolados naquele mundo, a humanidade permanecia sob ameaça.

-- Eu tenho que fazer uma coisa. Não posso ir ainda.

-- Do que está falando? Venha logo para cá – Takako chamou. Atrás dela a praia era iluminada pelo sol da tarde, que o mar refletia convidativamente – Estamos seguros deste lado, não precisa mais se preocupar com nada.

-- Yukio, não deixe que ninguém venha atrás de mim – Mikoto pediu em voz baixa – E se o pior acontecer e eu não voltar, feche a porta, está bem?

-- O que ela disse? – Sayuri perguntou ao lado da prima. Atrás das duas, Ame e Haku olhavam para ela ansiosos, e Yukio parecia mais confuso que todos.

-- Como assim? Se você...

-- Yukio, cumpra seus deveres como guarda das miko, é só o que peço. Pode fazer isso?

Apesar do medo e da tristeza que a compreensão daquelas palavras trouxe, o rosto do rapaz endureceu numa expressão determinada, e ele assentiu. Mikoto sorriu agradecida e correu na direção oposta.

-- Ei! Aonde ela vai?!

Yukio entrou na frente dos quatro e apressou-se em explicar que ela tinha um plano e não demoraria a voltar. Takako ainda tentou passar por ele.

-- Mas o que ela vai fazer?

-- É perigoso no castelo, eu tenho que ajudá-la – Haku argumentou. Podia derrubar Yukio facilmente, mas preferia não ter que fazer isso.

-- Mikoto pediu para nenhum de vocês ir atrás dela. Não vamos correr riscos desnecessários nem atrapalhar que ela está fazendo, isso vale especialmente para vocês duas – Yukio se dirigiu às duas primas, que o encararam frustradas.

-- Se é isso que ela quer, talvez devamos aceitar e ter fé nela, não é? – Ame falou pausadamente. Takako inspirou fundo e decidiu:

-- Se ela não voltar em cinco minutos, eu mesma vou buscá-la.

-- Todos vamos – Sayuri adicionou e Haku assentiu em concordância.

*

A velocidade máxima de Mikoto não era rápida o bastante, ela ouvia apavorada os monstros se aproximarem, e parecia que não ia chegar nunca à sala das máquinas. Num momento um estrondo altíssimo a fez se encolher contra a parede com as mãos sobre a cabeça, temendo que o teto fosse desabar.

Quando finalmente alcançou a sala das máquinas, refez os passos que percorrera com Akumi horas atrás até encontrar a escadaria para a torre, que ela galgou pulando três degraus por vez.

Um pedaço da parede do alto da torre estava destruído, explicando o estrondo de antes, e do lado de fora havia um gashadokuro, estendendo a mão para dentro, procurando uma presa.

Mais ao longe Mikoto avistou dezenas, ou talvez centenas de youkai cercando o castelo e vindo cada vez mais de além das montanhas, alguns se concentrando em frente ao portal. Ela devia começar imediatamente. Segurou a pérola azul com força, rezando para seu plano dar certo.

Apontou a lâmina para baixo e a fincou entre duas pedras do chão, e concentrando toda a energia que sentia fluir do seu corpo para o kami na arma, gritou:

-- Morte!

Uma onda de energia azul-celeste partiu da ponta da lâmina, varrendo toda a extensão do vale e se estendendo para além das montanhas até se perder de vista. E todos os youkai por onde ela passou desapareceram em nuvens de cinzas.

*

Todos ficaram boquiabertos quando a onda azul partiu do alto da torre e desintegrou todos os monstros que avançavam contra o castelo e a porta. Sayuri e Yukio não contiveram os urros de alegria, e começaram a gritar o nome de Mikoto como um hino de vitória.

Mas a alegria não durou. Mal haviam terminado de comemorar e Takako ofegou com a visão da torre rachando e se despedaçando para logo em seguida desabar.

Haku e Ame instintivamente correram para as portas, mas Yukio foi mais rápido e as fechou antes que os primeiros escombros as atingissem.

-- O que está fazendo?! – Sayuri gritou, também avançando contra as portas para ser contida por Yukio. Takako, em contrapartida, mantivera-se onde estava, paralisada pela constatação do que acabara de testemunhar.

-- Mikoto está...

-- Não fale! – Haku gritou e puxou as portas – Ela não pode estar...

Mas um amontoado de pedras enormes e pedaços do castelo bloqueavam completamente o caminho como os restos de uma avalanche.

Sayuri não conseguiu mais se segurar e desabou nos braços de Yukio, chorando tão alto quanto era forte a sua dor. Takako também não conteve as lágrimas, que fluíram em silenciosa melancolia enquanto Ame tentava consolar um Haku que não parava de gritar o nome de Mikoto.

O Conto da Donzela do SantuárioOnde histórias criam vida. Descubra agora