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O brilho da hitodama se refletia nas paredes de água da fenda, dando ao ambiente uma luminosidade azulada que seria bonita se não fosse tão sobrenatural. E num momento o céu desapareceu, criando a sensação claustrofóbica de uma caverna subaquática.

-- Você não é Mikoto, não é? Quem é você? – Takako falou para se distrair. Naturalmente, a hitodama não disse nada, mas a jovem ouviu vozes aparentemente vindas de cima, sussurros tão baixos que precisava se esforçar para captar algumas palavras soltas:

-- Decepção.

-- Armas vivas.

-- Reprogramados e melhorados.

A hitodama parou atrás da jovem miko, como que esperando à distância para não se envolver. Agora logo acima da cabeça de Takako, só iluminava um pequeno trecho adiante, depois havia só um breu impenetrável.

-- O que foi? Quer que eu vá sozinha?

O orbe fez um pequeno movimento que se assemelhou a um aceno de cabeça. Takako suspirou fundo e seguiu em frente.

Seus olhos não demoraram a se adaptar ao escuro, e a jovem distinguiu o formato de uma pessoa pequena encolhida abraçando os joelhos, os cabelos negros soltos encobriam seu rosto e escorriam pelo quimono. O alívio encheu o peito de Takako.

-- Que bom que te encontrei, Mikoto! Vamos sair logo daqui e voltar para casa – ela exclamou, mas a menina não se moveu – Ei, está me ouvindo?

Mikoto se encolheu à aproximação da jovem e virou o rosto para o outro lado, os ombros trêmulos e a voz rouca ao falar:

-- Não sou uma pessoa, sou um instrumento. Para ser usada contra o mundo. Reprogramada e melhorada de acordo com a conveniência.

Takako não entendeu o que ela falava, mas supôs que tinha a ver com ter descoberto sua família biológica ali, como previra, e a verdade fora dolorosa demais.

-- Ei, nós não nos importamos com quem são seus pais ou se a sua família não é boa. Não é isso que nos define, Sayuri disse isso antes, não lembra? – ela pôs a mão no ombro de Mikoto, e no instante em que a tocou, foi como se um choque elétrico passasse por seu corpo.

A memória de Mikoto fluiu para a mente de Takako, e a jovem viu como um filme dentro de sua cabeça tudo que Akumi revelara e como a menina se sentira com tudo isso. Havia uma pequena lacuna na lembrança logo depois, seguida pela visão da cena de pouco tempo atrás, na qual Mikoto usara sua naginata contra os próprios amigos.

Takako afastou a mão, ofegante e sem palavras. Soluçando, Mikoto ergueu o rosto para olhá-la pela primeira vez, e aquela não era a Mikoto que ela conhecia, mas uma versão mais nova, uma criança que não devia ter mais de cinco anos.

-- Nasci dentro de uma máquina, não tenho pais. Eu não nasci em uma família, fui feita. Fabricada com o objetivo de desgraçar vocês e o resto do mundo – e enterrou o rosto nas mãos, soluçando com mais força – Pensei que seria a sacerdotisa do céu, como a Sayuri disse uma vez, mas não sou. Sou uma tempestade que destrói tudo abaixo dela.

Por algum tempo Takako só conseguiu olhar para a diminuta amiga com pena, e ao mesmo tempo admiração por ainda ter tido força para se portar contra Akumi depois de saber a verdade. Aquela pequena menina se provara muito mais forte do que pensara.

Mas agora ela estava quebrada, consumida pela culpa de seu nascimento e pelo que fizera sob o comando de Yasha. Também estava dolorosamente dividida entre o desejo de voltar para os amigos e todos que amava, e o medo de ser uma ameaça para todos caso o fizesse.

-- Como pode pensar uma coisa dessas? – Takako a segurou pelos ombros para encará-la – Como pode ser uma ameaça se tudo o que fez só nos ajudou? Eu e Sayuri não teríamos chegado nem na metade do caminho se você não estivesse conosco. Quem descobriu sobre a Yasha? Quem lutou contra youkai com mais coragem do que imaginávamos que tivesse? E quem sempre fez o que nós não pudemos?

O Conto da Donzela do SantuárioWhere stories live. Discover now