[Cap.3] O homem no canhão.

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Idára não levantou de súbito como sempre, ficou em seu quarto a passar a mão no livreto e na textura escamada, criando em sua mente um modelo de criança que mais se parecesse com o de sua mãe. Considerando que criar um rosto, pela imaginação, era ainda mais difícil quando se desejava ter a exatidão materna. Foi interrompida por dois toques na porta, escondeu o livreto rapidamente debaixo do travesseiro, a voz de Clarisse soou do outro lado:

— Vamos Idára, quanto tempo demorará nesse quarto? Os meninos do contorcionismo irão comer tudo e não sobrará nada para você!

As tábuas do chão foram trocadas, o que era melhor para os inconstantes pés dela, acostumada a trambicar por entre os espaços do encontro de uma madeira com outra. Por causa da troca não se ouvia mais as passadas, tirando as mais densas, e Clarisse tinha um pisar suave, estava bem a frente e Idára precisou correr para alcançá-la. Estranhou a falta do nheco-nheco, passou por algumas portas, em verdade molde de porta, era um lençol ou pano. E mesmo que ainda sendo cedo, não podendo se comparar com o acelerado do horário de banho, o corredor tinha um leve tráfego, fazendo-a cessar a correria e trombar com alguns ombros, seguiam para a mesma direção. Outra coisa que não mudou era o barulho vindo da cozinha, precisamente do cômodo ao lado onde haveria um mesão. Era preciso firmeza para achar um lugar vago por ali, passou para lá, Barbuxa a percebeu, deu um tapa na cabeça de um dos palhaços com um pé na mesa e esparramado em duas cadeiras, então a senhora fez sinal e ela logo se sentou. O cozinheiro Penha em seguida a serviu pães e chá verde.

— Não há nada tão bom quanto ensaio de apresentações novas! — Fred disse, era um dos contorcionistas.

— Nem me diga, estou tão animada para isso que me reforçarei com mais um pedaço de pão. — replicou outra contorcionista, tentando por si agarrar mais um dos fatiados, mas foi interrompida com um tapa na mão dado por Penha.

— Ora vamos! Para onde toda essa comida vai? Não sei como são magros se são tão gulosos!

— Que bom ter falado sobre apresentações, estou a pensar no dia em que a senhorita Idára participará de uma delas. Já encontrou alguma que lhe agrade? — A costureira, mãe Ursa, perguntou.

— Não sei se tem algo em que eu seja boa. — foi sua resposta envergonhada, da qual fez Rudá seguir os olhos nos seguintes gestos acabrunhados dela, no pegar da colher e remexer a comida no prato.

— Isso requer aprimoramento, mas lembremos daquele tempo honorário, aquela apresentação fantástica que Clarisse criou e tenho certeza que essa será tão boa quanto aquela. Lembram do homem do canhão? — dando ênfase nestas duas palavras, Fred fez com que parte do falatório de fundo cessasse. O jeito deles foi disfarçar, alguns desviaram o olhar para a comida, o velho Hamish se remexeu em sua cadeira e Clarisse saiu a procura de lenha. — Nossa queridíssima curandeira Rebequinha, que honra ter um pai como Joseph o nosso antigo curandeiro que além da função também era o homem do canhão! Que orgulho, não é mesmo? — ele ainda dirigiu seus braços em direção a moça que encarou o chão, em qual suas feições foram tampadas pelo longo cabelo preto e com uma peculiaridade, tinha algumas mechas loiras quase brancas na parte da frente como a cor do cabelo do pai, tracejando ao mistério genético.

De abrupto ela deixou o local, mãe Ursa se levantou também, tinha posicionado as mãos em frente a boca e nisto se segurava.

— Deixem-na quieta e terminem o desjejum. — Hamish avisou com o olhar direto para a costureira que cedendo os braços num meio termo hesitante sentou-se novamente.

Ergueu-se desta vez Rudá, mexeu a cabeça como se negasse algo e saiu tão apressado que o barulho das tábuas fora ouvido até para onde terminavam, se foi de provável atrás de Rebeca. Não que os ouvidos fossem tão apurados, mas os ali presentes se mantiveram em silêncio, nem mesmo o ruído no prato foi tão estrondoso quanto aquela saída.

Em todos os cafésWhere stories live. Discover now