[Cap.10] Um momento ao tempo.

15 6 1
                                    

De manhã bem cedo Idára foi a procura de seu pai, passou por todo o acampamento até chegar à tenda onde ele dormia, mas o mesmo não estava lá. Foi caminhando em direção aos barulhos de martelos que vinham da entrada da lona de apresentação. Kaíke junto a alguns homens começava a tirar as estacas das barracas do chão. Resolveu que não falaria com ele até que tivesse terminado, pensava que por se tratar de um trabalho pesado o fôlego do momento era o que impulsionava. Sentou-se ali no chão e abriu discretamente o diário de sua mãe.

Suriname, terça-feira 1976

Acredito que venhamos a passar um longo tempo aqui, o mais será com a notícia que terei de falar. Estou trabalhando de meio período na cafeteria de Cisco, está sendo bom para distrair a mente já que as únicas pessoas que falam comigo são Kaíke e Lucinda, uma das contorcionistas. Não posso me esquecer também de Mãe Ursa e Yancy, é bom tê-las por perto, mas penso que há muita diferença de pensamentos para que eu me sinta acomodada. Ursa guarda a maioria das coisas para si, tem um jeito estranho de se comportar, deve ser mania de olhar os outros com aquelas vistas finas! Ela se preocupa muito com o que irá falar comigo, não vai perder nada daqui, não é como se ela tivesse alguma coisa. Yancy é por demais leal, não se aborrece com as minhas reclamações, mas está longe de entendê-las. Elas estão adestradas.

Alguém poderia me contar o final dessa história. Os portões de saída do circo para mim abrem além das nuvens. Não tem nada que possa mudar isto de minha mente e muito menos quando já está escrito no meu coração, está correndo em minhas veias. Quando tento me reconstruir tirando esta minha vontade, fica como desenho semifinalizado, apesar de ter aproveitado a folha de rascunho, mas ter pintado apenas metade, não é bonito, é arrepiante.

Está sendo muito bom o tempo que passo lá, além de estar aprendendo a preparar café em todos os seus procedimentos. Cisco disse que irá me ensinar a fórmula de todos, se assim eu o ensinar algumas coisas do circo também. É uma troca, ele tem me alegrado muito apesar de que as coisas não são mais as mesmas para mim e creio que prosseguirão assim. Minha corrente amarrada ao circo é muito resistente para ser cortada, devo expiar-me com mais algumas preces por causa de minhas reclamações constantes sobre a vida, ainda a tenho e a tenho em saúde apesar de todos esses pesares. Continuarei observando de minha gaiola, até para quando poderia voar para longe, imagino.

Suriname, quarta-feira 1976

Você deve ignorar essas marcas de lágrimas, diário, quando tudo secar ainda estará inteiro. A chuva quase me pegou ontem, foram mais pingos dos que os depositados em você. O que os meus pais pensam que eu sou? Estão dobrando a vigília, até colocaram lorotas na cabeça de Kaíke. Sabia que o emprego uma hora não seria mais aceitável, nisto querem manter-me por perto, estão dando uma atenção desenfreada a esta causa, mas ela é natural e eu sei me virar. Não me ocorrerá nenhum mal.

Não perguntei a Kaíke o que ele pensa, posso estar insuportável hoje, faz alguns dias que não ligo para o meu cabelo ou se minha roupa está limpa. Posso estar fazendo isto de propósito, não tenho uma certeza para aquilo que me aborrece, mas esta é uma inquietação invisível. Vou melhorar, a parte que me toca é que estou grávida..."

Kaíke foi trocar de ferramenta quando notou a presença de Idára, atenta para algo entre os joelhos. Caminhou para lá e deste jeito ela se levantou subitamente e ele percebeu quando guardou algo no bolso do avental.

— Pai, já deve saber o que aconteceu.

— Depende, há muitas fofocas rodando a todos os lados, mas se está tratando da troca de quartos... — Nisto que tocou o nariz com o indicador e ficou pausado nesta pose.

— Isso é um absurdo pai! Eles não podem invadir o que é meu.

Ainda manteve um tempo em silêncio, remexeu na caixa de ferramentas e apanhou um novo martelo.

— O que é realmente seu nesse circo?

Neste baque os olhos dela piscaram: — Eu não trabalho então eu...

— Estou dizendo o que você considera ser seu além de objetos que não estimam valor, o que é tão seu que não pode ser tocado por ninguém, que tem parte em você?

— Eu não tenho certeza...

— Por acaso eles tocaram em algo assim? Sua resposta pode ser não, sendo assim há uma tarefa a fazer e que é realmente difícil, não se zangue para não se enganar. Ignore eles e deixe-os pensar que podem manobrar as pessoas como bem entendem, mas assumo que o cuidado deve ser redobrado, já não sei mais do que se passa na cabeça de seus avós. Siga com coragem. Seus avós costumam ter uma língua ligeira, parecida com a da sua mãe, mas há sentimentos e interesses investidos. Posso te dar a melhor proposição, confiar em Deus, sei que ele cuidará de ti. — pegou com cuidado nas mãos dela, a mão áspera acariciou os dedos finos.

Idára balançou a cabeça e saiu um pouco mais confiante. Vistoriou entre as tendas e parou no meio do caminho, ficou olhando para dentro de si, se havia um projeto de destino, e não achou nada. Mesmo o quarto que eles haviam mexido, não haveria nenhum objeto que consideraria importante o suficiente para correr a briga a não ser o livreto que levou consigo, acreditava que se ele não estivesse mais em suas mãos isto sim poderia ser suficiente para começar o conflito.

Seguiria as instruções do pai. Ela pensou em orar novamente, talvez se adicionasse as palavras culpa e arrogância ao se referir aos avós, seria capaz de retirar a raiva que fluía, mas sua consciência definitivamente não permitiria. Muitas ideias foram apresentadas, havia hipocrisia apontada para eles e de volta três dedos a condenando também. Toda aquela raiva pela manhã desapareceria. Já sabia que não conseguiria manter dos mesmos sentimentos de ardor na frente dos avós. Eles são o circo e são sua família, acompanharam seus tombos, compartilharam abraços, "Céus! Eu nunca fui maltratada por eles", o pensamento dizia. Porém sentia que era sua responsabilidade conhecer a verdade. Saber de Amália não iria ferir regra nenhuma e se se deve ferir o coração de alguém o dela já estava pré-disposto a se machucar mais um pouco. Os outros sabiam da história e a tinham escondido no baú, como o do trailer. Deveriam é ter rasgado as fotos, as lembranças, mas pegaram cada um o pedaço para si e esconderam. Isto sim é fingir, esquecer e ignorar, mas ela não esconderia mais seus desejos. O medo do desconhecido batia na porta, como havia pedido confiança, teria o trabalhar para alcançar certo lugar em seu coração e consequentemente em suas decisões.


*Fotos do capítulo de  aranprime e billow926 em Unsplash.

Em todos os cafésWhere stories live. Discover now