14- O segredo dos gatos

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-- Ei, baixinha – Sirhan cumprimentou Sahira à noite – Aonde você vai?

-- Na casa do Halim.

-- De onde você o conhece?

-- Uma maracajá, Shaya, nos apresentou hoje de manhã.

-- É claro que ia ser a Shaya – o leão riu – Ela conhece todo mundo da floresta e do cerrado.

Chegando na toca de Halim, Sirhan o lambeu, molhando a cabeça toda do gato. Os três passearam e pararam à margem de um riacho, em cujas águas a lua só se refletia parcialmente, coberta pelas árvores. Sahira e Sirhan brincaram enquanto Halim limpava o rosto.

-- Sirhan, pode nos dar licença por um momento? – pediu Halim num momento – É que faz bastante tempo que não falo com outro gato.

-- Sem problema – ele se afastou e deitou-se numa rocha. O gato perguntou à Sahira:

-- Como está Bast?

-- Ainda é um oásis no deserto. Os gatos correm livres pela areia – à medida que foi se lembrando de casa, falou menos mecanicamente, as lembranças mais bonitas do que pensava que seriam – o Rio tem água cristalina, todos os filhotes brincam perto dos cactos, e alguns de nós sonham desbravar o deserto.

--Então está como a deixei.

-- Mas estava cercada por tigres e leões quando eu a deixei. E o Sirhan é minha única esperança de salvar minha casa, mas ele não quer sair daqui – Sahira miou cabisbaixa.

Halim acariciou seu rosto com o focinho. Ele tinha um cheiro muito bom, morno e agradável, com algo de levemente familiar para Sahira.

-- Vamos nos acalmar e parar de pensar nisso por um minuto, está bem? Não foi para deixá-la triste que eu te chamei aqui – quando ela se acalmou ele prosseguiu – Pela sua idade, você já deve saber o básico de magia, mas conhece os segredos de Bast?

-- Minha mãe ia me ensinar antes do ataque dos leões. Mas como você sabe disso, se não é um gato negro completo?

-- Eu não devia saber, mas minha irmã me contou depois que nosso pai morreu. Ela achou que não tinha problema já que eu era quase todo preto – Halim sorriu, nostálgico, depois ficou sério novamente – Todas as espécies de felinos têm uma magia diferente, algumas tem a ver com suas habilidades físicas, com o ambiente ou outro fator que podemos chamar de aleatório. A nossa magia se enquadra nesse último.

Sahira assentiu com a cabeça, incentivando-o a continuar. Sua cauda balançava de expectativa, enfim saberia o maior segredo dos gatos.

-- Nossa magia nos permite entender e conhecer o mundo do além.

Por um momento ela ficou paralisada, surpresa, depois veio um pouco de incredulidade. Halim percebeu isso.

-- Não é como se pudéssemos falar quando quisermos com os que já se foram, mas compreendemos como é seu mundo e como ele funciona. Sua mãe já te falou para não temer a morte, certo?

-- Sim, ela disse que todos temem a morte, mas na verdade não há porque ter medo.

-- O resto do mundo vê a morte como uma espécie de má formação, defeito, como se morrer fosse ofensivo, mas é só mais uma mudança, da mesma forma que nascer e chegar à idade adulta. Nosso povo entende, por isso vivemos mais em paz conosco do que a maioria dos felinos.

Sahira pensou nos pequenos gatos-do-deserto e seu segredo, tão importante quanto o de Bast, senão maior. Ela se lembrou:

-- Mamãe dizia que aceitar a morte faz com que aproveitemos melhor a vida.

-- Exatamente – Halim se espreguiçou – Agora, não se esqueça...

-- Não contar a ninguém, principalmente se não for um gato de Bast.

O gato ronronou satisfeito e Sahira aproveitou para tirar uma dúvida:

-- Há quanto tempo mora aqui? E por que foi embora de Bast?

-- Faz pouco mais de uns dois anos que me mudei. Eu queria sair do deserto, conhecer o resto do mundo, e quando cheguei aqui, me senti em casa.

-- Mais do que na sua casa de verdade? – Sahira compartilhava do desejo de conhecer o mundo além do deserto, mas depois ela tinha certeza que sempre ia querer voltar para Bast. Halim deu de ombros.

-- Acho que sempre fui um gato com coração de jaguar.

*

Para esfriar a cabeça de tanta informação, Sahira foi até Sirhan, e ele a recebeu com uma lambida que a molhou do focinho até as pontas das orelhas. A gata se enxugou com a pata e falou:

-- Se você vai querer me dar banho, me deixe fazer isso também.

O leão deitou a cabeça, rindo. Sahira se ergueu nas patas traseiras para alcançar o rosto dele, sua pequena língua só conseguiu limpar uma quantidade ínfima de pelos. Sirhan riu dos resultados e Sahira lhe deu uma patada, que ele revidou derrubando-a suavemente no chão e fazendo cócegas em sua barriga.

-- Precisa de ajuda, Sahi? – Halim chegou correndo e pulou na cabeça do leão.

Os três entraram numa luta que terminou com os duelistas deitados no chão, gargalhando sonoramente. Halim ficou de pé, ainda rindo, e anunciou:

-- Agora eu os deixo, jovens, vou caçar um pouco.

O leão e a gata recuperaram o fôlego e ela perguntou após uma pausa:

-- Sirhan, onde está sua mãe? Ouvi que você veio para cá com ela, e senti um cheiro diferente do seu na toca.

-- Morreu no ano passado. Halim ficou muito triste, eles eram amigos próximos.

-- E você nunca pensou em voltar para a savana depois disso, quem sabe?

Sirhan olhou para ela incrédulo, depois seus olhos se encheram de decepção.

-- Então é isso que você quer também. Por isso está com Iana, só quer que eu volte e seja rei para fazer o que é do seu interesse. E pensar que eu gostei de você.

-- Minha casa e minha família... – Sahira tentou explicar, mas Sirhan interrompeu:

-- Eu também perdi minha casa e família, baixinha, mas às vezes não se pode fazer nada sobre isso a não ser aceitar a realidade.

Ele se afastou, rosnando de raiva. A gata o seguiu, ainda tentando fazê-lo entender:

-- Espere, eu não queria que fosse desse jeito – o leão foi mais rápido, ela o perdeu de vista e parou, ofegante – Eu também gostei de você.

A Feiticeira de BastWhere stories live. Discover now