6 - A sabedoria dos caracais

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Só quando os primeiros raios do sol apareceram no horizonte, Iana procurou uma grande rocha e se deitou à sua sombra. A essa altura Sahira não aguentava mais a sede, e aparentemente Iana também não. Sua língua caía da boca aberta, comprida e seca.

Depois de andar a noite inteira e sem água nem comida, nenhum felino duraria muito quando o calor do deserto chegasse ao ápice. Sahira olhou ao redor à procura de algo para beber, e lá longe avistou um oásis.

-- Iana, espere aqui, vou procurar água.

E saiu correndo antes que ela pudesse fazer objeções. Esperava chegar antes que ficasse muito quente, o que não demoraria mais do que poucas horas.

O oásis parecia próximo, mas Sahira levou mais tempo do que imaginava, parecia não sair do lugar. Quando enfim chegou, cada fio de seu pelo estava quente e sentia tanta sede que mergulhou o focinho na água. E o tirou imediatamente, porque não era água.

-- Droga – ela cuspiu areia. Devia estar realmente esgotada para não perceber que era uma miragem. Quantas vezes seus pais alertaram sobre as ilusões que o deserto prega em viajantes sedentos?

Sahira se arrastou cabisbaixa de volta para de volta para perto de Iana. Se aproximando da rocha em cuja sombra ela repousava, a gata viu um felino de pelo amarelo alaranjado e orelhas longas e pontudas. Era bem maior que um gato adulto, mas não chegava ao tamanho de um leão.

E ele não estava cansado, parecia até à vontade, não tinha cara de viajante perdido.

-- Caiu numa miragem?

-- Sim. Onde posso achar água por aqui? – Sahira perguntou. Normalmente ela seguiria o que sua mãe ensinou e não falaria com um estranho, ainda mais de uma espécie desconhecida, mas naquela situação qualquer ajuda era bem vinda.

-- Você é uma gata feiticeira, a julgar pela cor do seu pelo. Deve saber como encontrar água – ele virou-se e foi embora.

Sahira pensou um minuto no que aquele estranho dissera, e se lembrou de um simples encantamento que a mãe ensinara, um dos primeiros na verdade.

-- No caso de ter que viajar, não podemos subestimar o deserto – Femi instruíra – É difícil conseguir comida, mas não impossível, tem muitos animais pequenos para caçar. O problema é conseguir água, mas use este feitiço e não terá problema.

A gata começou a cavar e se concentrou, cravando as garras pequeninas no solo. Em menos de dois minutos saía água do chão e preenchia todo o pequeno buraco. Sahira pulou de alegria e bebeu até se fartar. Normalmente acharia a água arenosa, mas no momento lhe pareceu a melhor do mundo. Chamou:

-- Iana, vem cá! Não vai acreditar no que eu fiz!

Mas ela não estava ouvindo, sequer estava acordada. Mas adormecida ou desmaiada? Sahira cutucou seu focinho com a pata, sem resposta, então tentou sacudi-la, ficando de pé nas patas traseiras e pondo toda a força nas dianteiras, empurrando a cabeça da leoa e chamando o tempo inteiro:

-- Iana, acorde!

Então teve uma ideia. Cavou outro buraco, maior e bem na frente do focinho da leoa. Apressadamente repetiu a mágica e logo tinha água o bastante para matar a sede até de alguém do tamanho dela.

-- Iana, veja! Água! – Sahira teve que usar toda a força para empurrar a cabeça de Iana os poucos centímetros para sua boca tocar a poça. Depois mergulhou a pata e jogou um pouco de água no rosto da leoa, e seu pequeno coração deu um pulo ao vê-la abrir os olhos – Viva! Você não morreu de sede!

-- Claro que não morri, só estou cansada – ela deu um longo bocejo – Eu andei a noite toda. Mas um gole de água cairia muito bem.

Iana bebeu até quase esvaziar a poça. Agradeceu imensamente a Sahira e a parabenizou pelo feitiço.

-- Agora durma também, é melhor viajarmos quando não estiver tão quente.

Sahira concordou e se deitou junto da leoa, afinal também estava muito cansada.

As duas só voltaram a andar quando o sol se aproximava do horizonte. Depois de uma rápida refeição composta por uma cobra que Iana pegou saindo da toca, elas atravessaram outro pedaço do deserto, sem grande mudança na paisagem exceto por uma pedra aqui e um cacto ali.

Sahira contou sobre o felino de pelo alaranjado que ela viu e que depois sumira. Iana falou com admiração na voz:

-- Um caracal.

-- Um o quê?

-- Os caracais são habitantes do deserto, conhecem muito da magia dele. São felinos misteriosos, é uma raridade um ter aparecido. E eles não vivem tão no centro do deserto, devemos ter nos deslocado mais para o sul e não percebi.

-- O deserto tem magia? – Sahira perguntou. Iana fez que sim com a cabeça.

-- É claro, todo o mundo tem sua magia, Sahi, e são os feiticeiros de cada espécie que a conhecem e guardam.

A gata pensou se a mãe sabia disso tão bem quanto Iana e quando ela pretendia lhe ensinar tudo isso.

Amanhecia e dava para ouvir à distância o ronco do estômago de Iana. Sahira sabia que os pequenos animais que rastejavam pelo deserto não eram o bastante para matar a fome de uma leoa, ela precisava de mais comida. Então teve uma ideia.

Correu para longe e deitou-se no chão. Iana perguntou, confusa:

-- Sahi, o que está fazendo? Vai descansar aí a céu aberto?

-- Não tem nenhuma sombra pra gente se abrigar mesmo. Vou conseguir comida assim.

A leoa entendeu menos ainda, mas Sahira tinha razão, o jeito era deitar ali mesmo e descansar o máximo possível até esfriar.

Não demorou muito e surgiram urubus voando acima das duas felinas. Sahira permaneceu imóvel, e Iana a imitou, curiosa para saber o que a pequena gata pretendia fazer. Quando a primeira ave carniceira pousou perto de Sahira, a gata ficou de pé num salto e o atacou.

Todos os outros urubus debandaram, mas Sahira conseguiu morder o pescoço do que pegara e o entregou a Iana, orgulhosa por sua vitória.

-- Não vai comer? – a leoa perguntou começando a se servir. Sahira negou.

-- Vou pegar um lagartinho.

-- Sua ideia foi genial, Sahi – Iana elogiou, retomando a caminhada após comer. A gata, que caçara um pequeno réptil, respondeu:

-- Os animais do deserto são pequenos, e aves carniceiras só aparecem quando tem carniça para comer. É só usar o que o deserto oferece.

-- Sem uma sombra para descansarmos, é melhor seguirmos em frente um pouco mais. Quem sabe não achamos outro abrigo.

Elas não encontraram outra sombra, mas quando o sol estava a meio caminho do ápice, se depararam com outro daqueles felinos de pelo laranja e orelhas pontudas, sentado no alto de uma duna, olhando para as duas. Parecia estar esperando-as.

A Feiticeira de BastWhere stories live. Discover now