8 - O segredo no coração do deserto

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Os caracais moravam num pequeno oásis, a algumas horas de viagem da terra de Xangô, ao sul. Segundo Betserai, o caracal que as trouxe, de vez em quando eles iam para a savana caçar, quando o período de seca era mais forte.

As cores daqueles felinos não tinham tanta variação, todos podiam se camuflar na areia. Com exceção de um pequeno grupo de pelos negros, que Sahira supôs serem os feiticeiros, e que foram ao encontro das recém-chegadas.

Enquanto Iana explicava a situação, os filhotes de caracal chamaram Sahira para brincar. Eram maiores que ela, mas não tanto quanto gatos crescidos. Apesar disso, ela se sentia um pouco entre adultos.

Durante a brincadeira, as crianças se afastaram do oásis e começaram a brincar de esconde-esconde, com Sahira sendo a primeira a ser encontrada por não ter pelos de cor camuflada. Depois, quando descansavam à sombra de uma palmeira, um dos caracais perguntou:

-- Como você e aquela leoa conseguiram sobreviver no deserto sozinhas?

-- Eu fiz uma mágica para conseguir água do chão, e me fingi de morta para pegar um urubu.

Disso eles gostaram muito, elogiaram a esperteza de Sahira e pediram que ela mostrasse exatamente como fez. A gata se deitou na areia só para atender aos caracais, e se apressou em levantar, pois era quase meio dia e estava quente demais.

Notou ao longe um pequeno gato olhando para ela, mas assim que notou que ela o encarava de volta, apressou-se em se esconder num amontoado de rochas. Sahira perguntou quem era e um caracal negro que chegava respondeu:

-- Um gato do deserto. São nômades, mas estão sempre nessa região. Agora voltem para as tocas, crianças, está muito quente aqui.

Ao voltar, Iana contou que partiriam no dia seguinte, depois de descansarem ali.

As noites eram mais agitadas ali do que em Bast, o calor tornava impossível fazer quase tudo durante o dia. Iana e a maioria dos adultos saíram para caçar, e como os que ficaram estavam ocupados com os filhotes, Sahira pôde se afastar um pouco.

Foi até onde vira o tal gato do deserto, e achou uma pequena família saindo da toca. A mãe não era muito maior que Sahira, e tinha uma cara de filhote que por um momento confundiu a jovem gata. As cinco crianças dela olharam para Sahira curiosas.

-- Olá – ela as cumprimentou. Tinham pelo cor de areia e listras castanhas espalhadas. Deviam se camuflar muito bem. A mãe perguntou:

-- O que traz uma gata das terras do leste às profundezas do deserto?

-- Minha terra natal está com problemas. Minha amiga e eu procuramos ajuda na floresta além do Rio Verde, mas tenho medo de não ser o bastante.

-- Talvez possamos ajudar – um macho saiu da toca – Quando a vi hoje mais cedo, tive um pressentimento de que estava numa missão importante, e pensei que deveria oferecer auxílio em nome de nosso povo.

-- Você não vai mostrar nosso segredo mais antigo, vai? – a fêmea questionou. Sahira tentou argumentar:

-- Um ligre tomou minha casa por querer a magia dos gatos. Se tem algo mágico aqui, ele vai querer também.

-- Então ajudando você, estamos garantindo nossa segurança também – o macho concluiu – Acompanhe-me.

Ela o seguiu para dentro da toca enquanto os filhotes foram com a mãe, aprender a caçar, provavelmente. A gata agradeceu ao entrar:

-- Muito obrigada mesmo. Meu nome é Sahira, mas pode me chamar de Sahi se quiser.

-- Eu sou Enzi – ele entrou num buraco no canto da toca, que se revelou um túnel – O que vou mostrar é o maior e mais antigo segredo dos gatos do deserto. Pode ser que precise dele ou não, mas de qualquer forma, não pode contar a ninguém sobre ele.

-- Certo – aquele túnel não acabava mais, Sahira pensou se não estavam indo para o centro da Terra.

O túnel acabava num pequeno salão com um buraco circular no chão. Enzi sentou-se em frente ao buraco e Sahira defronte a ele. Notou que uma pequena luz brilhava no fundo, como se estivesse olhando para o céu de dentro de uma caverna.

-- Isto é um poço dos desejos – Enzi explicou – Lá no fundo habita um espírito ancestral que realiza apenas um desejo para quem lhe pedir, mesmo que pareça impossível. Porém, depois que o faz, permanece inativo por um tempo.

-- Realiza qualquer desejo? – Sahira estreitou os olhos, tentando ver uma forma lá, mas não distinguiu nada.

-- Sim, e se precisar, estará aqui para você, mas só em caso de extrema necessidade.

-- Está bem.

De volta à superfície e do lado de fora da toca, Enzi repetiu para Sahira.

-- Não esqueça: não contar a ninguém e só usar em ocasião urgente.

-- Entendi. E obrigada por tudo.

Ela voltou correndo para o oásis, e a caracal idosa que a abrigaria até o dia seguinte perguntou:

-- Onde você estava?

-- Fui dar uma olhada nos gatos do deserto.

-- Eles não deixaram você nem chegar perto, não é? Eles nunca deixam.

-- Isso aí. Só pude olhar de longe.

*

O dia seguinte passou se arrastando. Sahira fitava um graveto fincado na areia, esperando a hora que sua sombra apontasse para o leste, quando partiriam. Estava impaciente, afinal fora embora de casa para ajudá-la e ainda não fizera nada.

-- O calor do deserto a frustra? – o caracal negro perguntou, deitando-se à sombra – Quer ir embora logo, não é?

-- Quero poder voltar para casa, mas não posso me mexer enquanto é de dia.

-- Não se preocupe com o resto da viagem, com nossa ajuda chegarão ao Rio Verde em menos de dois dias.

-- Vocês vêm com a gente?

-- Não, mas temos uma afinidade com o deserto que permitirá a vocês atravessá-lo.

-- Afinidade mágica? – Sahira sorriu, e o caracal permaneceu em silêncio.

Quando finalmente o sol chegou ao horizonte, Sahira quase não se aguentava de ansiedade. Ela e Iana agradeceram a ajuda dos caracais e se despediram, e ao se afastarem do oásis, a gata lançou um olhar para as tocas dos gatos do deserto. Os filhotes a observavam, abanando as caudas em despedida.

A Feiticeira de BastWhere stories live. Discover now