Guarda o mandamento e não deixes a lei de tua mãe.

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- Eu não entendo como a única coisa que você faz da vida é estudar e mesmo assim ainda tem que ficar com esse caderno do lado do prato na hora de comer. E eu pensando que minha geração era perdida...

Era manhã de sexta-feira, naquele apartamento, compartilhado por quatro seres vivos do sexo feminino. Ficava localizado no bairro do Embaré, para aqueles familiarizados com a cidade portuária que era Santos. Ali, no final da Pedro Lessa, perto do Guilherme Álvaro, divisa com o bairro do Boqueirão.

E se isso soou como grego para você, caro leitor – desde já, perdão pelo bairrismo, virá a se repetir -, não se sinta sozinho. Karina Bae também não havia registrado palavra nenhuma do que fora escrito nos dois últimos parágrafos. Não por não conhecer a região, Karina era bem familiarizada com a sua cidade natal, obrigada. Era só que era tão comum sua mãe começar o dia resmungando - sinal de uma menopausa precoce, talvez -, que Karina estava acostumada demais a ignorar as palavras da mulher.

Então, quando Karina ergueu a cabeça, com a maior cara de desentendida, não foi surpresa nenhuma que encontrou Irene Bae do outro lado da bancada e ilha central da cozinha. Com uma cara séria demais para quem comia torrada, acompanhada por um copo iogurte de morango. E de pé, pelo motivo que fosse. Apesar de Irene estar pronta para um dia de trabalho, nenhuma das duas sairia de casa em menos de dez minutos, para que a Bae não se sentasse em uma das banquetas, como Karina fazia.

Irene que continuou encarando a filha até o inconsciente da mais nova trazer à memória as palavras que a mãe havia direcionado a ela.

- Não foi por mal, eu esqueci! E é Artes! Quem liga pra Artes? Não vão me dar uma folha pra fazer um desenho com perspectiva no vestibular, pra quê serve isso?! – Karina argumentou ao indicar o caderno de desenho aberto na bancada, que exibia todas as suas tentativas falhas de desenho. Karina já trajava o uniforme azul e amarelo da escola, aliás, e tinha a mochila jogada na cadeira à esquerda.

- Qual o problema, logo cedo?

Karina olhou para trás, por cima do ombro direito, em direção à voz recém-chegada à cozinha. Era Seulgi Kang, quem havia acabado de entrar, abotoando os botões da manga da camisa que vestia. Seulgi que não sofria das mesmas oscilações de humor da outra mulher, apesar de ser mais velha – pouco mais de um mês, mas era. Não tinha os mesmos problemas de mau humor matutino, mas, todos os dias, pela manhã, estava apressada. Para Seulgi Kang, toda manhã era urgente. Não ouvia o próprio despertador com certa frequência.

- O ponto de fuga tá fugindo de mim, eu não tenho olho pra essas coisas... – Só que, ao contrário da reclamação revoltosa que Karina fizera para a mamãe Bae, a Kang recebeu manha e biquinho, como parte dos resmungos frustrados. Funcionava, pelo menos. Porque foi com um olhar preocupado que Seulgi se aproximou da filha, pronta para ajudar com o que quer que fosse.

- Você mima demais a menina. Cê sabe que ela tá com isso atrasado, não sabe? – Irene negou com a cabeça ao retomar o próprio café da manhã. Encarava a cena a sua frente com interesse, porém.

- De desenho eu acho que ainda manjo. – Seulgi respondeu com uma risadinha rouca, como quase sempre era. Observou por não mais do que dois ou três segundos e gesticulou com a mão em pedido silencioso. Sem demorar a entender o que a mãe queria, Karina a entregou o lápis.

Ainda em silêncio, Seulgi pediu por atenção ao erguer o indicador.

O problema do desenho não era o ponto de fuga, ele estava no papel, junto com a linha do horizonte e um conjunto de cubos meio tortos, uns em relação aos outros. Seulgi apenas tracejou a linha de fuga com a qual a filha estava tendo dificuldade. Um risco em aproximadamente quarenta e cinco graus, naquele caso, e Karina abriu a boca ao assentir, parecendo, enfim, compreender qual era o problema anterior do desenho.

Eis que os filhos são herança do Senhor!Where stories live. Discover now