PRÓLOGO: QUANDO FALTAVA LUZ

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    Ciudad de Justicia de Barcelona, outubro 2026

Parece que botaram fogo no céu.

Ou essa é a impressão que se tem ao olhar para cima nos dias que antecedem o inverno. Azul, riscado por listras esfumaçadas cor de rosa, com as bordas encobertas por enormes nuvens laranja-avermelhado que se recolhem sobre a montanha de Collserola. Desde tempos imemoriáveis, a serra tem sido testemunha da atividade humana. Não faz muito tempo encontraram ferramentas usadas há mais de cem mil anos. Eu não sei. O que sei é de uma história que sou testemunha agora mesmo a alguns quilómetros de distância da montanha, onde a maioria dos turistas não circulam, no bairro Hospitalet de Llobregat. Para ser mais preciso, em um complexo de prédios baixos rodeados de pequenas e frágeis árvores, a Ciutat de la Justícia de Barcelona i de l'Hospitalet de Llobregat. Local onde se concentram as atividades judiciais da cidade.

Quarto andar, final do corredor. Dois jovens, nem tão jovens assim, apenas que não tiveram tantas responsabilidades que lhes tirassem o sono, ou que, acabasse com o dinheiro para comprar bons cremes anti-idade, esperavam para entrar na sala de julgamento.

Quem é o vilão e quem é a vítima? Difícil dizer. Ambos poderiam ser aqueles seus bons vizinhos, bonitos e simpáticos que te cumprimentam pela manhã, segurando a porta do elevador ao sair com o cachorro para passear.

Numa ponta da sala, a moça de amendoados olhos cor de chocolate olha para o relógio, 16h30. Não satisfeita com o tempo que parecia não passar no pulso, busca o celular no bolso do blazer preto que divide o espaço entre ela e seu advogado. Me afasto ligeiramente para que tenha mais espaço para sua busca. Ela levanta a cabeça e sorri para mim em agradecimento. Sorrir, é exagero. Olívia estira os lábios ensaiando um sorriso. Observo seu rosto de traços exóticos, maquiado como quando era aeromoça. Exceto a boca em forma de coração, esta já não leva o icônico batom vermelho da companhia aérea para a qual voava. Elegante e discreta, minha cliente ajeita o tubinho azul-petróleo. Eu suspeito que ao se vestir aquela manhã ela tinha em mente que cores escuras intimidam e, embora estivesse aterrorizada com o que estava para acontecer, queria mostrar ao mundo o contrário.

O celular marcava as mesmas 16h30. Impaciente, desliza a mão pelos cabelos divididos no meio (penteado que demonstra controle), impecavelmente presos em um rabo-de-cavalo na altura da nuca (disciplina). Olívia arrasta o dedo pela telado celular e abre a caixa de e-mails.

Bom dia, Olívia. Acabei de ler sua mensagem (...).

Assim começava o e-mail com a resposta de Alina. Tento adivinhar por quê Olívia nunca o leu. Antes que eu pergunte, ela guarda o aparelho e abandona a cabeça no encosto da poltrona.

— Esse cheiro me embrulha o estômago... — diz, fechando os olhos.

O perfume que um dia já a embriagou de amor e agora lhe causava náusea vinha do outro lado da sala.

Apesar de não ter olhado naquela direção desde que chegamos, podia senti-lo. O rapaz alto, com mãos de pianista, e aparência de gerente de banco. Gerard Capdevila.

Indubitavelmente distinto naquela camisa azul clara. O azul incita a credibilidade. Era essa a intenção dele? Me pergunto. Forçando um pouco os ouvidos, consigo ouvir a voz dele, agradável e pausada, com inconfundível sotaque catalão. Dizia ao advogado que iria buscar um café e que traria um para ele também, "— O senhor prefere Espresso ou americano?".

16h48. A sessão começa às 17h00.

Olívia, com a cabeça pendendo para trás, se transportava para o momento em que sentiu o cheiro da brisa do mar de Barcelona pela primeira vez. O táxi em que estava rodeando a serra, a direita ela via as colinas verdes da cordilheira de Collserola que subiam e desciam como se dançassem uma ciranda ao redor da cidade. Olívia dividia o banco traseiro com a expectativa e a satisfação. Nunca se esqueceria o surgir daquele mar de um azul hipnotizante que rodeava a estreita faixa de terra, preenchida por construções de tetos cor de terracota banhados pelo sol brilhante. À medida que o táxi avançava, Barcelona se desnudava diante dela. Todos aqueles edifícios saídos de sonhos, linhas arredondadas, formas e cores inspiradas na natureza. Impossível ficar imune ao sedutor atrevimento do modernismo catalão.

— Já ouviu dizer que quando a morte chega, a vida passa diante dos nossos olhos — Olívia falou com um semblante de melancolia — Te digo uma coisa: quando o julgamento que vai definir o resto da sua vida está prestes a começar, isso também acontece.

Mesmo de olhos fechados, Olivia sabe que estou no celular, na minha rede social, e em silencio. Sei o que tenho que fazer, guardá-lo. Volto a ouvi-la:

— No verão, quando eu era criança, chovia todo fim de tarde. Com direito à raios, trovões e falta de eletricidade. A gente tinha um "kit-falta de luz", sempre preparado na última gaveta do armário da pia da cozinha. Era a energia elétrica acabar e em menos de cinco minutos todos os habitantes da casa estavam reunidos no mesmo cômodo. Caras de desolação iluminadas por velas. Menos eu. Para mim era o momento de estarmos juntos com infinitas possibilidades de diversão! Eu era a primeira a pedir que um adulto contasse uma história, ou a sugerir algum jogo. Mas bastava a eletricidade dar o ar da graça, para o jogo ser interrompido ou a história terminar, mesmo se não tivesse chegado ao final. Cada um voltava para o que estava vivendo antes do temporal. E me restava apagar as velas e guardar tudo. Quando a covid-19 aconteceu, o confinamento, foi como estar de volta aos tempos de infância quando faltava eletricidade.

A porta grande se abre, Olívia se endireita no pequeno sofá a tempo de ver a senhora com cara de poucos amigos sair e autorizar nossa entrada. Olívia, involuntariamente, se vira na direção a Gerard. Os olhos dele, duas esferas azuis mediterrâneas fixos nela. Olhos de mediterrâneo. Mediterraneus, 'entre as terras' em latim. A cena que passa a seguir não dura mais do que cinco segundos, mas é suficiente.

Por cinco segundos só existem Gerard e Olívia, os demais tornamos invisíveis, conversando em uma linguagem telepática. Me sinto como uma vez senti, mergulhando com golfinhos. Eles absortos em seus complexos diálogos por som, e eu me provando a sensação de impotência e pequenez. Gerard aperta as mandíbulas dos primeiros habitantes da Catalunha, os greco-romanos. Olívia crava as unhas impecáveis no couro marrom do sofá. Ela nem respira.

Tenho a impressão de que estão repassando, juntos dentro dessa bolha, a história que os trouxe aqui. 

A RESPOSTA DE ALINA ( CONCLUÍDO)Where stories live. Discover now