ENTRE O MILAGRE E O DESASTRE VAMOS VIVER

177 37 24
                                    


Bairro de Sant Gervasi, setembro de 2020

Se o verão de 2020 foi o verão da dopamina, da busca por excessos, inevitável depois de três meses em que a maior interação social permitida era na fila do supermercado, o outono por sua vez foi frustrante e desalentador. O número de mortos e internados por coronavírus duplicaram, o governo voltou a restringir a movimentação das pessoas, não se podia entrar nem sair de Barcelona durante quinze dias, e os horários de funcionamento do comercio e serviços voltaram a ser menores. O que não fossem essenciais podiam ser fechados da noite para o dia.

Diante da vitrine da loja Tiffany, Olívia inspirou o ar marino e sem soltá-lo, entrou na joalheria mais badalada da avenida Passeig de Gràcia com o objetivo de vender seu anel de noivado. A joia garantiria alguma reserva de dinheiro para complementar o salário até Cecília conseguir um emprego. Formada em antropologia, Olívia conseguiu um trabalho temporário como assistente em uma galeria de arte. Como as exposições estavam suspensas indeterminadamente, ela estaria responsável por arquivar documentos e cuidar das obras guardadas.

"Todos os dias você tem que enfrentar algo que te meta medo de verdade", dizem. Olívia já tinha perdido as contas das vezes em que se viu colocando, por ordem de prioridade, os "medos de verdade" diários. Que ninguém da família morresse de covid-19 era um, que Cecília não fosse embora, não esquecer de levar máscara ao sair de casa. Mordendo o lábio inferior, deslizou a caixinha verde sobre o balcão de vidro em direção ao senhor de terno e gravata. As memórias do dia em que aquele anel entrou no dedo dela a rasgava por dentro.

2. Em catalão: entre o milagre e o desastre vamos viver.

— A vida é mesmo uma roda gigante. — O vendedor balançou a cabeça examinando o anel. Levantou os olhos para Olívia e completou, esnobe: — Às vezes se está por cima, outras por baixo.

Lágrimas intrometidas surgiram em seus olhos, como vizinhos curiosos na janela. Olívia manteve o olhar do vendedor, sem piscar, ou elas escapariam molhando a máscara de que a protegia da covid-19.

Ao colocar os pés na rua, buscou o celular na bolsa. Havia uma mensagem de Gerard. 

 

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.


Beber, ouvir música e conhecer gente nova. Não era o correto a fazer em meio a uma pandemia. Precisavam evitar aglomerações. Mas sua necessidade de esquecer os problemas era tão grande quanto respirar.

Responderia algumas horas depois que aceitava o convite.

— Putz, Oli, acabamos de chegar, estou morta... tem certeza de que vamos fazer isso? —Cecilia se espreguiçou  no sofá.— O que acha se for ao supermercado, compro umas coisinhas e você prepara um jantar gostoso pra gente?
— Acho que não. Óbvio! Belisca alguma coisa que tem na geladeira e vamos! Por sua culpa estamos nisso — disse, enrolando a toalha ao redor do corpo e pegando o secador de cabelo. — "Vamos vai ser legal" — imitou a voz de Cecília repetindo a frase que usou para convencê-la a ir ao El Born na noite em que conheceu Gerard.

A RESPOSTA DE ALINA ( CONCLUÍDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora