O LOBO DA ESTEPE

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O LOBO DA ESTEPE

Lugano, outubro de 2020

"Não há realidade exceto aquela contida dentro de nós. É por isso que tantas pessoas vivem uma vida tão irreal. Elas tomam as imagens fora delas como realidade e nunca permitem que o mundo interior se afirme".

Hermann Hesse escreveu isso no livro O Lobo da estepe, onde conta a história de um homem de 50 anos, em crise existencial, que não sentia que se encaixava no mundo em que vivia. Descobre dentro de si um 'ser humano' de natureza domesticada vivendo ao lado do 'lobo'. Um mundo obscuro de instintos.

Hesse viveu em Lugano, cidade fronteira entre Suíça e Itália, com colinas verdes, um lago pacato, ruas estreitas e tranquilas com casinhas que pareciam terem saído de algum conto dos irmãos Grimm.

Em meados de outubro de 2020 as viagens continuavam limitadas, mas Gerard conseguiu, de alguma maneira, escapar de Barcelona e se encontrava na terra de Hesse buscando cogumelos com sua colega de trabalho alemã Srta. Meins e seus amigos. Não era a primeira vez que Gerard estava com eles, mas por alguma razão naquele dia caminhando entre as árvores, introvertido e deslocado. Era normal sentir-se assim em Barcelona, entre as pessoas com quem convivia, mas em Lugano com ela e seu ciclo de amigos, ele sempre havia estado bastante à vontade.

Tudo estava tão bem, seus planos se encaixando nos mínimos detalhes. De onde vinha essa sensação de estar no lugar errado?

Percebeu a necessidade de falar. Algo estava mudando, movendo-se dentro dele. Assim como o protagonista do livro de Hesse, percebeu que o que estava sentindo não era essencialmente bom. E teve medo. Mas não sabia como ou com quem podia compartir isso. Exceto por Olívia.

— Está tudo bem? — perguntou Alina Meins.

— Sim.

Olhou para ela, parecendo tentar encontrar alguma resposta no rosto familiar da pessoa com quem mais havia compartilhado momentos nos dois últimos anos.

— Hoje parece que você está tão longe.

De corpo Gerard estava em Suíça, mas sua mente estava em Barcelona.

Em Olívia preparando sua tapioca, depois que ele terminou de montar o armário. Com um ombro apoiado no batente da porta, a observava cantarolar, depositando de maneira desordenada, os ingredientes sobre o balcão. Em uma frigideira despejou a farinha de tapioca que caiu como flocos de neve. Depois abriu uma gaveta, chafurdou a mão sem olhar para dentro, reconheceu o objeto que necessitava pelo toque, o pegou e deslizou o quadril para fechá-la.

Ele ainda não entendia do que se tratava aquela receita. Parece um tipo de crepe. Seus olhos foram atraídos para as morenas coxas que preenchiam o short jeans branco. A pia estava cheia de casca de tomate, pedaço de plástico, caule de cheiro-verde, que aos olhos de Olívia estavam feias; duas panelas, tábua de cortar, faca com restos de cebola. E uma Olivia descalça a mover os quadris de um lado, para o outro, suave e confiante, acompanhando o som da bateria da música que vinha do aparelho de som. Ela aumentou o fogo de uma das panelas e subiu por suas narinas um cheiro inebriante. Instantaneamente teve fome. Carne seca acebolada, ela disse.

Tudo envolta de Olívia era um caos, mas de alguma maneira que Gerard não conseguia entender como, ela se movia com serenidade e destreza naquela na cozinha, que era tipo, a imagem do fim do mundo. Sem ter a mínima ideia de sua sensualidade displicente, passou uma mecha de cabelo fugitiva, por trás da orelha que levava uma pequena pérola branca; e seguiu falando enquanto as mãos habilidosas com unhas cor-de-rosa, cortavam os tomates e a salsinha.

Uma bagunça adorável. Assim ele definia Olívia. Gerard a olhava entre se sentia completo, relaxado e de bom humor. Surpreendido por uma sensação de finitude, teve medo. "Como tenho medo de que acabe uma coisa que nem começou?", ele confessaria meses depois.

Por um instante seus olhos desafiadores se fixaram nos dele. Pareciam perguntar em silêncio "— A que você vem?", mas da boca dela não saiu nada. Olívia apenas levou até ela a ponta do dedo, que segundos antes havia passado na panela com o recheio para a tapioca. Gentilmente apertou o dedo com os lábios e fechou os olhos. Sorriu ao sentir na língua o contraste agridoce da carne seca com o requeijão.

— Você fecha os olhos para provar a comida?

— Quando eu fecho meus olhos, eu consigo "ver" desde dentro com os outros sentidos.

— Ai, Olívia... — ele sorriu com ternura.

Enquanto comiam, Olivia perguntou:

— Você está fugindo do quê?

— De que o quê? Por quê? — Gerard, confuso.

— Você me disse que queria ir embora de Barcelona — ela o relembrou.

— Não fugir, só buscar outra vida. Viver em um lugar onde as coisas funcionem bem.

— E acha que se acostumaria a viver em um lugar que não é o seu?

— Minha irmã vive. Você também.

— Eu levo no DNA: meus bisavôs foram de África e Portugal para o nordeste do Brasil, depois meus avôs foram do Nordeste para o Sudeste. E então eu, saí do Sudeste do Brasil para o mundo. — Olívia sorriu e encolheu os ombros — Provavelmente eu não consiga parar nunca.

— Você não está feliz aqui? — A voz de Alina o levou de volta para Lugano.

— Impressão sua. Não me vejo em outro lugar que não aqui.

A RESPOSTA DE ALINA ( CONCLUÍDO)Where stories live. Discover now