O GAROTO SEM COROA

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Barcelona, janeiro de 1996

O Dia de Reis na Catalunha se celebrava com a mesma magnitude de Natal dos Estados Unidos. É nesta data, e não no Natal, que as crianças catalanas recebem os presentes que eram pedidos por meio de cartinhas entregues aos reis magos durante a cabalgata .

A via Laietana, uma das mais antigas ruas de Barcelona, se inundava de gente para assistir ao desfile. Era costume que as pessoas, principalmente as crianças, levassem coroas na cabeça durante o desfile. Gerard era uma criança, obediente e bastante tímido, que passava horas montando e desmontando brinquedos no quarto. Aquele ano, Jaume, pai de Gerard pela primeira vez decidiu acompanhar a família. Emocionado com a ideia de ir com o pai de mãos dadas pelas ruas iluminadas de Barcelona como seus coleguinhas, Gerard pensou que precisava estar à altura, então pegou todo o dinheiro que tinha no cofrinho, comprou o material que precisava e passou dias preparando a própria coroa. O dia tão esperado chegou, e Gerard sentado com a barriga em cólicas, esperava pelo pai; orgulhoso, ostentando na cabeça sua 'obra de arte'. A sua volta, a mãe e a avó conversavam com o casal de vizinhos que iriam com eles; os filhos destes saltitavam com a irmã de Gerard.

Ao aparecer na sala, antes de cumprimentar aos demais, Jaume lançou um olhar diminutivo ao filho. Colocou as mãos sobre a cintura proeminente e disse:

— Aonde você PENSA que vai com essa estupidez e chamando a atenção? — Enfatizou a palavra pensa, mantendo um olhar desconcertante.

O menino sentiu os olhares críticos se voltarem para ele. Escutou os risinhos perversos das crianças. Ainda era muito jovem para entender que, o que fez suas bochechas corarem e as lágrimas embaçarem os olhos foi o sentimento de humilhação. E que passaria o resto da vida inteira fugindo desse sentimento.

Montse se apressou em dizer algo para diminuir o constrangimento:

—Jaume! Todos levam coroas! Ele mesmo fez a dele, e está muito bonita!
—Que tradição ridícula!

Enquanto os pais discutiam como se fosse invisível, Gerard, sem dizer nada, marchou até o quarto, abriu a janela e lançou a coroa.

— Tradição ridícula — repetiu o garoto. Com olhos inexpressivos, observou a coroa flutuar para longe dele na noite fria.


Bairro da Sagrada Família, março de 2020

"O avião fica no alto porque não tem tempo para cair".

Dizia a frase de Orville Wright, grifada no post it amarelo pendurado no computador de Gerard. Seu recordatório diário. Havia muito chão para o advogado sénior da Nocla. Inspirou o ar e olhou em volta, apreensivo. Olhou para o relógio no pulso, as sextas-feiras todos saiam mais cedo, ele não, e agora tinha de correr se não quisesse chegar atrasado para o crossfit. A vida e seu corre-corre. Apesar do cansaço, estava satisfeito. Finalmente estava em uma rotina satisfatória e que podia se dedicar a si.

Pegou a bolsa, apagou as luzes de sua sala e, mal as portas do elevador de paredes transparentes se fecharam, deu a volta para se admirar no espelho. Os trinta e seis anos de idade lhe caíam muito bem. A pele de vinte anos, o sorriso branco e alinhado; e o corpo atlético, graças aos circuitos em bicicleta pela montanha que fazia todos os finais de semana.

Durante boa parte da vida, sentira que o destino lhe colocava algemas invisíveis. Ter uma carreira promissora, depois uma família de manual. E tudo isso, vivendo em Barcelona para cuidar dos pais. Estava mal dizer, mas foi graças à um desses momentos de dedicação à eles, que lhe veio a luz.

A RESPOSTA DE ALINA ( CONCLUÍDO)Where stories live. Discover now