Sabores amargos e doces mentiras

429 61 10
                                    

Minha respiração estava acelerada e o suor na minha testa escorria. Quando abri a porta do banheiro feminino, corri para o gabinete mais próximo e rezei mentalmente para que elas não me encontrassem. Sentada no vaso, acolhi as pernas em cima da tampa do sanitário e mordi os lábios. Elas tinham me visto, eu sabia disso.

Silêncio. Eu não escutava nada além do barulho das vozes vindas do corredor e aquilo era assustador. Mais um dia naquele inferno. E eu pensei que estava livre dela finalmente.

"Mexicanos e prostitutas. Você tá ganhando no nosso bingo, sabia Sarinha?" A voz alta e em um tom doce falso ecoou pelo banheiro, me fazendo segurar com força os joelhos numa tentativa da garota não me ver. "Meu tio me disse que seu pai anda comendo a sua babá. Quanto você acha que ele tá pagando?" Os sapato dela riscavam o chão, passo a passo mais perto de onde eu estava. "Quanto você acha que a puta do pai dela cobra para fingir que gosta de ser mamãe da Sarah?" Todos os insultos chegavam nos meus ouvidos e bagunçavam minha mente. E eu revidaria, socaria a cara dela como um dia já fiz, mas eu estava sozinha dessa vez. George não me protegeria dos ataques das outras - aquelas hienas carniceiras que perseguiam Clara como se ela fosse Scar.

"Você tá muito quieta hoje." Clara continuou. Ela já tinha aberto todas as portas e eu estava atrás da última. "Por que você não sai e a gente conversa um pouquinho?" A sombra dos seus pés se formou há metros de mim. Separadas apenas pelo cubículo ao meu redor, eu chorei, contendo as lágrimas ao morder a boca e soluçar, sabendo que ela ainda continuava do outro lado. "Por favor, vai embora." Eu disse num tom muito baixo. Palavras banhadas pelas lágrimas amargas de raiva e medo de uma garota que tinha a mesma idade que a minha.

Já era tarde da noite quando o forno apitou, avisando que o assado de frango com legumes estava pronto e deixando Tommy ansioso pela reação de Emily. A garota ruiva conversava com Joel e o namorado na cozinha, tímida e adorável com suas bochechas redondas e coradas. "Eu me formei na faculdade de Belas Artes em Nova Iorque, fiquei um tempinho lá até o fim do curso e depois voltei para cuidar do meu pai."

Joel sabia que era um jantar importante para Tommy, então o deixou abrir uma das velhas garrafas de vinho compradas por ele numa viagem a uma vinícola na Carolina do Sul. "E você nasceu aqui mesmo?" O mais velho perguntou, enganando o estômago com um pedaço de pão. Emily concordou e depois de tirar a taça de vinho dos lábios, disse rindo: "Num interior cheio de vacas, soja e lama." Ela cruzou as pernas de baixo daquela mesa e riscou as unhas na madeira desgastada.

"Meu pai foi diagnosticado com alzheimer e deixava poucas pessoas chegarem perto dele. Papai tinha muito medo. Ele gritava... Ainda me lembro quando o vi pela primeira vez após chegar de viagem." Os pensamentos de Emily revisitaram o passado, quase tendo a certeza que estava diante daquele que dizia ser, quando criança, o homem mais bonito da sua vida. "E bem," A ruiva jogou o ar para fora e encontrou a face de Joel. "ele sempre me deixou ficar por perto e por isso cuidei dele até o dia que ele nos deixou. E depois que papai morreu herdei a loja de ferramentas no centro e a transformei na Cuz Music."

"Ohn." Joel murmurou, abrindo a boca e engolindo a massa meio dura de pão. "Você deve ter tido um pai muito bom para deixar sua faculdade e se dedicar a cuidar dele."

"Sim, eu tive." Emily sorriu. Edgar a deu tudo que precisava para levar uma vida excelente fora do Texas e por isso, por ser tão presente na vida da filha e dar a ela a possibilidade de seguir o caminho que quisesse, Emily escolheu ficar ao lado do pai até o seu último dia.

Os pratos na mesa mostraram, pouco tempo depois, a escassez de beleza de uma comida cheirosa. Estava longe de ser um grande chefe, mas Tommy sabia fazer uma ou outra coisa. E ele havia tentado bastante, então contava com a avaliação do seu esforço e nem tanto do gosto da refeição preparada. "Peculiar, bem peculiar." Joel repetiu ao ver o peito de frango quase despedaçado que Tommy cortava sem jeito algum; ele sujava as mãos e tirava ossos sem necessidade. "Você quer ajuda, meu amor?" Emily perguntou, as sobrancelhas arqueadas mostrando o espanto com o quão descoordenado era.

Os seus olhos brilharam. Tommy descansou os ombros e apertou os lábios como se estivesse sendo salvo daquela briga entre ele e a ave morta. "Por favor." Ele riu.

Emily e Tommy tinham boa sincronia. Ela era motorista e ele um carro já rodado com muitos problemas no motor. Emily o empurrava e o fazia dar partida quando ele caia em ponto morto. Metáfora boa que passava na cabeça de Joel, pois era assim que os via. Algo novo, na verdade. Ele nunca pensou que o irmão fosse se apaixonar por alguém, o conhecia suficientemente bem para ver que aquela cena na sua frente jamais fora repetida. Tommy nunca trouxera ninguém especial aquela casa, nenhuma vez apresentou uma mulher a família e Joel não esperava que fosse acontecer. Se um dia visse uma mulher que não fosse Ana ou Sarah andando pela casa, com certeza seria uma das putas que o irmão encontrava quando ia aos bares da cidade. Jamais algo sério.

"Vocês combinam bastante. Para ser honesto, eu não achei que fossem dar certo." Ele contou o que pensava sem rodeios. "Não achei que fossem passar de um mês." Emily, já sentada na cadeira, provando as batatas salgadas demais para não serem acompanhadas de um belo copo de água, balançou a cabeça e riu. Tommy se sentiu desconfortável e achou que ela também ficaria. "Acredite, eu também não achei. Eu dei o meu número para Tommy e, me desculpe a ousadia, não esperava que fôssemos ter mais que um noite juntos. Mas o seu irmão é muito mais que só isso estampado na cara dele." Emily segurou a mão do namorado por cima da mesa, direcionando a conversa para ele. "Joel, Tommy é a pessoa mais gentil e adorável que já conheci. E se ele não era assim antes fico feliz que agora ele seja, e mais feliz ainda que ele seja assim por mim."

Tommy suava frio coberto pela pele macia dela, sentido uma corrente elétrica percorrer o corpo. Ele quase a agradeceu por todas as palavras, mas pareceria criancice perto de tudo que Emily tinha exposto a Joel. E então, perdido nos olhos claros e nas bochechas cheias de sardas da ruiva, falou algo que talvez não estivesse pronto para falar. "Eu te amo." Sem ligar para Joel que ainda estava lá, ele a puxou pelos braços e a beijou calmamente, molhando os lábios com o gosto do desespero sentido por ele mesmo ao mentir tão friamente sobre o que sentia.

Joel engoliu a resposta sem dor, ele não havia dito aquilo para machucar ou ferir o irmão. Era o seu jeito idiota de mostrar que o conhecia. "Até..." O moreno mastigou o frango, gostando do sabor apimentado parecido com o de Ana. "que pela primeira vez dele usando um avental, não ficou tão ruim assim, não é, Emily?"

"Sim. Mas eu tenho quase certeza que tem um dedo da Ana nisso."

"Ah, por favor! Eu posso muito bem ter feito isso sozinho." O outro retrucou, sentindo-se alvo de uma terrível acusação.

"E você fez?" Joel e Emily perguntaram juntos, cruzando os braços em sincronia.

"Mas é claro!" Respondeu. A voz estridente desaparecendo dos ouvidos daqueles naquela pequena cozinha banhada pela luz escura e alaranjada.

Na manhã da quarta feira seguinte, Ana resolveu tomar o café com o amigo que não via desde a tarde passada. Com um sorriso dos seus no rosto e uma xícara de café grande nas mãos, ela chamou Tommy para o canto da sala. "Como foi ontem a noite? Ele se comportou bem?" Ela perguntou referindo-se a Joel.

"Na medida do possível." Ele concordou, balançando a cabeça rapidamente.

"E você acertou o ponto do assado?" Mais uma pergunta para os ouvidos de Tommy.

"Sim, sim."

"O tempero estava bom? Não coloquei muita pimenta?" Os lábios sem cor de Ana prendiam a atenção de Tommy que, dessa vez, negou.

"Eles adoraram, mas as batatas estavam salgadas." O cara respondeu e a viu revirar os olhos.

"Avisei para não salgar mais e você mesmo assim fez."

"É, eu sei. Mas tudo bem. Nem tudo podia estar perfeito se não eles desconfiariam que não fui eu quem fiz."

"E eles desconfiaram?" Ana deu um gole no café, preocupada de que o plano de Tommy de impressionar a namorada não tivesse dado certo.

"Um pouco."

"Ah, merda. Desculpa."

"Não, tá tudo bem. Eu sou um bom mentiroso, contornei tudo no final."

We Are Family - Joel MillerOnde histórias criam vida. Descubra agora