Amar dói

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Amar é difícil demais. Dói, corrói, machuca. Meu coração vivia saltando, ele frequentemente batia num passo maluco e incansável, o que era bom, era sinal de que eu estava viva. Mas parecia uma tortura senti-lo durante os último dias.

Eu estava fisicamente cansada e mentalmente fadigada por mil razões, ainda tentando me manter distante da ideia de estar doente. Porque, bem, eu sabia que os meus desmaios e enxaquecas não eram sinais de saúde boa. Eles sempre vinham acompanhados de delírios  e visões distorcidas, coisas que eu sabia que não existiam. Houve uma vez que eu gostei de tê-los visto -os delírios-, uma noite quente no último mês de Julho depois que papai se sentou ao meu lado na mesa, sorrindo. Depois de muito tempo bebendo todos dias, ele finalmente parecia estar sóbrio e conseguiu comer o guisado de legumes que me pediu para preparar.

Naquele momento, senti uma calma e meu coração diminuiu seu ritmo, como se a ansiedade se dissipasse no instante em que imaginei ver minha mãe atravessando a cozinha atrás de meu pai. Ela usava um avental azul claro sobre um vestido rosa rendado, seus cabelos loiros brilhavam intensamente, quase ofuscando minha visão e tornando seu rosto uma imagem embaçada. Dormi bem naquela noite, torcendo para que aquela visão se repetisse, mesmo sabendo que tudo era fruto de uma imaginação que se tornava, assustadoramente, mais vívida.

"O que aconteceu na escola ontem? Por que Sarah parecia tão triste?" Joel pegou a faca das minhas mãos e passou a manteiga nas torradas recém assadas. Me surpreendia ao escuta-lo perguntar isso, pois ele andava tão distante e preso nos próprios problemas que parecia não notar mais a própria filha.

Mordi a torrada fresca e fitei a mesa por alguns segundos, hesitando responder e pensando na conversa que eu tinha tido com a garota onde ela me pediu pra guardar segredo do pai e do tio, desesperada para que não fosse o motivo de mais um conflito na vida deles. "Ela não estava triste, estava com dor. Tinha sentido muita dor de cabeça e cólica durante o dia, e estava ansiosa para fazer uma prova de matemática. Além do mais, ainda está com a cabecinha cheia daquela intimação judicial com o seu nome." Não que eu soubesse exatamente o que ela estava pensando disso, mas se estava tão preocupada em não causar mais problemas para ele, certamente temia o que aquele processo poderia significar. Se eu me sentia assim, não seria presunção acreditar que ela compartilhava do mesmo medo.

"Sim." Joel engoliu o restante da torrada, não dizendo mais nada e nos deixando num silêncio cruel.

A última semana havia sido angustiante. Após nossa "discussão", onde argumentei com uma parede de concreto e o vi tentar me convencer de que resolveria tudo sozinho, praticamente dizendo "eu não preciso de você, posso me virar sozinho", nosso pequeno mundo colorido desbotou. Estava irritada com a situação e com ele sempre tentando me manter à distância. Eu queria ser seu suporte, sua mão direita, queria estar ao seu lado em todos os momentos. Mas aquele cabeça dura não me deixava chegar perto.

A sensação de impotência só aumentava. Primeiro com ele e depois com a Sarah, com tudo o que aconteceu com ela sem que eu pudesse levantar um dedo para interferir. Eu era só uma marionete ali, não podia dar um passo sozinha sem cair e ser repreendida.

"Pode me dar um copo d'água? Por favor?" Perguntei com a voz falha, sentindo a coceira na garganta após ver Joel se levantar ainda quieto. "Aqui." Ele respondeu, me entregando o copo e olhando em meus olhos. Seu corpo bem acima do meu causava-me arrepios, o toque gentil dos seus dedos na parte de trás da palma da minha mão, que descia até o meu pulso a medida que ele se abaixava e ficava na altura do meu rosto. Eu não sabia onde focar os meus olhos, Joel me deixava confusa, ele me fazia desejar queimar sob as suas mãos na mesma intensidade que me fazia odiá-lo por não me permitir ser sua cúmplice.

Joel torceu os finos lábios na minha frente e acariciou a minha bochecha com o indicador, afastando os fios de cabelo da frente da minha boca. "Não me espere acordada, querida. Eu tenho muito trabalho até de madrugada." E então ele depositou aquela adaga que eu já estava acostumada de receber no coração. Nos víamos pouco, em momentos quase raros, mas muito menos de uns tempos para cá. Joel estava ganhando o dinheiro dele, estava sustentando sua família, mas eu sentia falta dele, senti falta dos nossos almoços juntos, das nossas risadas que quase já não dávamos, dos nossos beijos. Me sentia uma vadia lamentando-me por isso... Mas eu também sentia falta do sexo.

We Are Family - Joel MillerOnde histórias criam vida. Descubra agora