AS CAVEIRAS DE FENIR

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Durante tudo o que ocorreu a Levi, Zayan e Alice encontravam-se em seu encalço. O homem do espaço podia detectar bem os rastros deixados pelos Amurakes, e os analisava com esmero. Mas, em sua mente confusa e hiper aguçada, os sentimentos das trevas afloravam aos poucos.

Memorizava os momentos que tivera com Walros, e a proposta que lhe havia feito. As imagens de poder e glória pareciam ainda mais fortes, e um sentimento mesquinho fazia seu peito inchar com excitação.

Sua índole encontrava-se ameaçada, dentre os arbustos e árvores daquele local. O rosto de Alice, mesmo que se mostrasse amigável, muitas vezes se parecia a Zayan como algo a ser aniquilado. Afinal, ele deveria ser o novo rei, e para isso, teria de matá-la.

Por sorte da soberana, tais cogitações apenas flutuavam no fundo da consciência do estrangeiro. Em meio aos pensamentos cruéis, feixes de sua origem apareciam como raios, dando-lhe mais informações, porém nunca completas. Foram tais feixes que o impediram de perder completamente o controle. Algo colocado ali por seus criadores, enraizado no DNA. Alguma coisa que o segurava de perder completamente sua moral superior e civilizada.

Eles encontraram Levi quando este estava a ser aclamado pelos Amurakes. Zayan não pôde evitar de sorrir ao vê-lo, mesmo que estivesse confuso com o fato de não se encontrar morto.

Alice e o homem do espaço trocaram algumas palavras animadas, e logo vieram passando pela vegetação até ficarem visíveis aos Amurakes. O chefe os olhou de cima a baixo, paralisando a comemoração para tal.

Então voltou-se para Levi, e perguntou-lhe se aqueles eram mesmo seus aliados. O guerreiro confirmou, e sem mais problemas, eles se uniram ao festejo. Os Amurakes ficaram desconfiados de Alice e Zayan a princípio, mas logo começaram a gostar deles, devido à postura honrosa que faziam àquele povo.

Mesmo que a batalha houvesse sido sangrenta no dia anterior, uma nesga de felicidade brotava em todos, e forte aliança desenhava-se naquele grupo.

Nesse período, Ykan já havia chegado ao esconderijo de sua arma secreta; era um poderoso e imponente castelo de pedras roxas, as quais reluziam à luz das muitas tochas das profundezas.

O chefe disse a seus homens que ficassem ao portão, enquanto ele entraria para conversar com o dono da imponente construção. Todos os Ykans temiam o lugar, e não objetaram as ordens do mestre.

Ykan disse palavras numa língua antiga, e após alguns segundos, as grades de ferro abriram-se em duas, deixando o caminho livre até as portas de carvalho do castelo. Ele andou até lá, e já dentro do monumento, observou a beleza e imponência ali presentes.

Quadros com o rosto do proprietário encontravam-se em cada canto das paredes, acompanhados por muitos candelabros e lustres brilhosos. E ali, bem ao centro da sala, uma grande mesa punha-se, cheia das refeições mais maravilhosas.

Um homem sentava-se a ela, um humano semelhante ao povo de Alice. Sua pele era velha e enrugada, com um nariz adunco e cheio de verrugas brotando de dentro do capuz largo. A seu lado, descansando nas bordas da mesa, um cajado de crânio de bode jazia.

— Senhor Fenir — disse Ykan, abaixando-se numa reverência. — Como é bom vê-lo de novo.

Fenir ergueu os olhos avermelhados como ameixas na direção do hóspede. Terminou de beber duma taça de vinho antes de responder-lhe.

— O que faz aqui, Ykan? Por que me incomoda?

— Temos problemas, senhor. Homens que vieram da superfície atrapalhar nossos planos!

— E o que eu tenho a ver com isso? Desde que meu castelo esteja seguro e tranquilo, nada farei para ajudá-los.

— Mas você tem uma promessa; uma dívida conosco! Nós o criamos nas profundezas deste fim de mundo. Era apenas um cadáver quando chegou.

Fenir parou os talheres no ar, o olhar vidrado no refletir belo das taças e pratos.

— Eu deixei de seguir este juramente há muitos anos — disse ele —, quando um de meus salvadores se foi! Pare de chantagens!

— Não são chantagens, meu senhor. Se não nos ajudar, ninguém vai poder manter esta propriedade em seus domínios.

— O que quer dizer com isso?

— Os humanos que vieram! Dentre eles não há guerreiros comuns. São muito mais fortes e destemidos, e temo que tenham se aliado aos Amurakes! Se nada fizeres, meu lorde, eles irão nos varrer do mapa. E, sem o nosso povo para protegê-lo, nada de castelo, e de banquetes esplêndidos.

Fenir riu-se, e por fim levantou-se da mesa, pegando o cajado com a mão nervosa.

— Se estiveres mentindo, reduzirei a ti e a seus homens a pó!

— Juro dizer a verdade.

— Onde eles estão?

— Na vila de Amurake, senhor! Pelo menos, um deles!

Fenir parou de falar, os lábios abrindo-se num sorriso sádico. Estava agora muito próximo de Ykan, soltando baforadas em sua face.

— Por sorte, eu ainda dependo de vocês — disse. — E resolverei o problema. Reúna a maior quantidade de homens possível, e espere aqui, que eu trarei os meus soldados.

Ykan assentiu, a cabeça tremendo feito um peão. Depois saiu da sala, suando de terror.

Quando a porta do castelo se fechou, Fenir ficou sozinho, olhando para o próprio cajado. Há muitos anos não o utilizava, e esperava que jamais tivesse de fazê-lo novamente em vida. Entretanto, não era um tolo, e sabia que não podia acreditar cegamente nas palavras daquela criatura pálida.

Batendo a peça três vezes no chão, fez as órbitas do crânio do bode brilharem azuladas. A magia das trevas em seu sangue por fim aflorava, canalizando uma espécie de esfera acima da mesa de jantar. Nela, em formas azuladas, Fenir via a vila de Amurake.

Primeiro, nada viu de mais, a não ser vários homenzinhos comemorando a vitória. Mas reparou algo em seguida; pessoas altas, bebendo e comendo com aquele povo de malditos. Os dois primeiros em que reparou nada tinham demais; eram similares a muitos humanos que já haviam caído nos mundos inferiores. Entretanto, um deles com certeza não pertencia à mesma espécie. Seu corpo, musculoso e sadio, demonstrava grande superioridade, e os profundos olhos negros possuíam algo de místico. Àquela visão, Fenir finalmente pôde ter certeza do que lhe dissera Ykan. Ele precisaria agir, ou aquele guerreiro gigante poderia destruir tudo aquilo que ele possuía.

Os Ykans seriam exterminados, deixando suas propriedades vazias de servos, sem ninguém para garantir-lhe os banquetes e confortos.

Decidido, foi até as grandes escadas do recinto, descendo-as enquanto a capa vermelha arrastava no chão. Chegou às masmorras, vendo nelas a quantidade de esqueletos putrefatos que nelas jaziam; vítimas de privações e torturas da guerra sem fim entre aqueles povos.

Então, respirando fundo com o peito idoso, o feiticeiro começou uma cantiga tenebrosa. Suas frases vibravam em ecos pelo recinto em que corriam, reverberando nos crânios vazios daqueles pobres mortos.

Nos olhos do cajado de bode, um fogo esverdeado acendeu, e da boca do osso, começou a espalhar-se dentre os esqueletos. Entrava nos cadáveres quase desfeitos, lhes iluminando de dentro para fora.

Fenir encarou-os, ainda cantando sem parar, os dentes podres rangendo uns nos outros. Por fim, os esqueletos começaram a tremer levemente, até se erguerem, endireitados diante de seu senhor.

— Hoje — disse Fenir — nossos inimigos temerão o poder do feiticeiro há muito adormecido. Hoje, vocês poderão vingar a terrível morte que tiveram gerando mais tortura e destruição. Hoje, vos levantais e correis para a batalha, pois ela vos clama e aceita.

As caveiras pareceram soltar uma risada, e numa grande fila indiana, avançaram para a porta e subiram as escadas, tendo nas mentes controladas uma única missão: matar Zayan e seus companheiros, custe o que custasse.

ZAYAN DO ESPAÇOOnde histórias criam vida. Descubra agora