1 | Steve Jobs

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Charlie gritava afoitamente sobre miscigenação quando a senhora do bloco dois da casa cinco, na ruela fatídica do Brooklyn, desfilava com aquele sujeito de olho azul. Batia no peito e murmurava sobre filhos loiros, sua garantia era tanta quanto a certeza de que morreria na vala de uma periferia; estuprada ou a queima-roupa pelos homens fardados de justiça, ou os dois.

Aquela Universidade Columbia, recheada de intelectuais que fechava a porta na cara de negros, aquele amontoado de jovens gritando por medidas políticas, ignorando a senhora do bloco seis que vivia com os ouvidos feridos de tanto ouvir sobre imigração. Aqueles macacos intelectuais sabiam como era a America Latina? Sabiam o que eram pontos turísticos impressos em folhas de jornais das mais diversas paisagens naturais, ninguém colocaria na primeira página o que os Estados Unidos, naquele exato momento, estava fazendo com esses países.

— É o terceiro dessa semana, JK!

— Terceiro? Da última vez não era o quinto?

Ele se esforçou um pouco para gargalhar, mas não conseguiu. Passou a mão no cabelo recém trançado, tudo indicava que não era empregado de lugar algum. Da última vez, o patrão rechonchudo da cor de cenoura, o expulsou a pontapés do bar que tocava jazz por não estar "apropriado". Charlie nunca calava a boca, então gritou de volta ao Sr. Mason "Ser preto não é apropriado! A sua mulher não pode dizer o mesmo, não é?!"

Péssimo, péssimo. Dormir com a perua loira do Sr. Manson foi ruim em todos os sentidos. A sorte foi a distância do bar até aquele distrito. O que não adiantava muito, a polícia estava fazendo a justiça em todo lugar.

— Por que você atira em lugares tão impossíveis? — Genuinamente, perguntei.

— A perua do Sr. Mason foi um acaso.

— Um dia você vai perder o pau por acaso.

Ele começou a gargalhar. Não entendi, eu não tava brincando quando disse aquilo.

— Sabe aquele Hope?

— Como assim aquele Hope? Depois do meu pai, ele é a única pessoa que parece ser asiático no Brooklyn!

Depois da Lei de Imigração de 1965 que permitiu chineses viverem na maravilha da America, só ouvi falar sobre um lugar Chinatown que era de não sei onde, a família de um primo vivia lá desde 1967, quando foram detonados por japoneses — queria eu que fosse figurativo. Nunca o vi, só ouvi falar. Agora, em 1988, havia disputa de mercado, coreanos e chineses colocavam suas mãos geniosas e faziam máquinas funcionar como se fosse mágica.

Meu pai teve o desprazer de lutar na Guerra do Vietnã, parou em Williamsburg e vive desviando de empresários que querem derrubar nosso prédio por um valor gigantesco, mas que não era suficiente para mudar de vida. Se fôssemos iguais eles, que fizeram até aquele computador que só vi anunciar na TV, estaríamos melhores. Se eu fosse branco como eles, ou fosse um chinês imigrante rico e empresário, acho que Charlie brigaria sozinho na rua — e seria preso sozinho também.

— A polícia bateu e revistou até as bolas do coitado.

— E os outros? Foram além das bolas?

— Claro, de costas vocês parecem brancos.

Comecei a gargalhar, se eu pensasse demais ia acabar chorando. Minha falecida avó, Tuyet Jeon, contou que vivia no fundo do ônibus com pessoas iguais a Charlie. Enxurrada de conversa fiada sobre roubarmos seus empregos e branquicelos puxando os olhos quando a viam. Cambada de filhos da puta.

Fomos Charlie, eu e aqueles latinos da rua de trás que levantamos aqueles prédios bonitos que eles amam se gabar sem ter botado a mão na massa. O edifício gigantesco no Greenpoint, cheio de espelhos espelhando os casarões e a pobreza dentro deles, a corporação sabia o que acontecia depois daquele vidro milimetricamente polido? As manchetes diziam que os computadores iriam revolucionar o mundo, Steve Jobs pensou em acabar com a pobreza depois do videocassete? Apple Lisa? Walkman?

REFLEXOS • jikook (1988)Onde histórias criam vida. Descubra agora