Dona Célia preferiu não participar da conversa com o homem que engravidara sua filha. Nove anos atrás, ela prometera que não deixaria ninguém da família chegar perto daquele traste, como costumava chamá-lo, contudo agora não tinha opção. Ele era a única pessoa que conseguiram contatar rapidamente para encontrar sua neta. A dor em seu peito, preocupada com o paradeiro da pequena Kat, se misturara com o ódio que sentira ao ter que depositar sua confiança em Martin.
Estava trancada em seu quarto, queria orar, pedir a Deus encarecidamente, com todas suas forças, para proteger Kat onde quer que estivesse. Deus era para ela o único pilar para acreditar que sua neta estaria bem e viva. Começou a remexer em suas coisas, procurar alguma coisa que pudesse lembrar de sua neta para colocar para as bençãos do Senhor.
Em meio a bagunça de uma das gavetas, que era pouco usada, estava perdido algo que Dona Célia se recordava muito bem da origem. O passado estava avançando tão rapidamente e de maneira brusca, como uma avalanche sobre ela. Pegou o objeto ali perdido. Era um envelope de uma carta. Na parte da frente tinham dois nomes escritos com uma letra quase ilegível de criança.
Célia era o destinatário. Quando a senhora, sozinha em seu quarto, leu o nome do remetente, a onda de passado tomou por completo seus pensamentos. Anos e anos atrás, quando Dona Célia ainda não era "Dona", quando não pensava nem mesmo em ter sua filha, muito menos a tão querida neta.
Abriu o envelope e pegou a carta em suas mãos. O papel estava amarelado e bem desgastado com o tempo. Era extremamente difícil a leitura, mas a senhora lia com tamanha facilidade. Já lera aquelas palavras tantas vezes antes, que conforme passava o olhar se lembrava da próxima letra como um sussurro bem longe.
Conforme lia uma lágrima solitária escorreu em seu rosto cautelosa, trazendo a lembrança nostálgica de um momento antigo, que retomava o presente de uma maneira distinta.
"- Célia! Vá encontrar suas irmãs para almoçar! - a voz da mãe de Célia chegou berrante aos ouvidos da garota em seu quarto. Era a mais velha de três irmãs e era obrigada a tomar conta das duas menores.
- Já vou, mãe. - levantou rapidamente e saiu de casa a procura das duas meninas.
Saiu gritando o nome das duas repetidamente no sítio onde moravam, esperando uma resposta. A irmã do meio ouvindo os gritos correu ao encontro de Célia que a mandou ir almoçar de maneira ríspida, sem paciência. A outra apenas obedeceu. Continuou o caminho gritando pela caçula que não aparecia.
Caminhou muito até finalmente encontrar a que faltava. Estava bem longe, sentada próxima a um barranco alto com as pernas cruzadas.
- O que você está fazendo aí, menina? A mãe está chamando pra almoçar e você brincando. Deixa só ela saber disso. Vai já pra casa. - gritava com a menina.
A caçula não respondeu, ficou balançando a cabeça tranquilamente olhando para a imensidão do horizonte a sua frente.
- Você me ouviu? - berrou ainda mais alto, se aproximando da irmã.
- Ouvi, Cél! Mas eu não estou com fome agora. - falou calma e inocente, sem se importar com os gritos constantes da irmã mais velha.
- Que não está com fome. A mãe está mandando, se você não for ela vai ficar brava é comigo. Vai logo, menina!
- Calma, Cél. - levantou-se e ficou parada no mesmo lugar em que estava. - Posso te fazer uma pergunta? - fez uma pausa, mas não esperou a resposta negativa que a irmã iria dar. - Você nunca quis voar?
- Para de ficar inventando coisas, deixa de ser criança! Seres humanos não voam, quantas vezes vou ter que te falar isso? - os berros não cessavam.
- Eu não acredito que não podemos voar. Eu sei que um dia eu vou estar igual aqueles passarinhos lá em cima. Pelo céu sozinha. Voando... - abriu os braços, e começou a girar com a cabeça erguida e olhos fechados.
Célia perdeu a paciência e se aproximou a passos rápidos da irmã. Segurou os braços dessa colando-os ao tronco, e fazendo-a parar de girar. Ficaram face a face.
- Para de inventar essas coisas, nós não voamos, mas se você não for agora para almoçar eu te faço voar rapidinho lá pra baixo. - os gritos foram arremessados tão rapidamente, que deixaram a caçula assustada.
- Eu só quero voar, Cél! - segurou o olhar cheio de água e tentou levar a mão para o bolso na barriga de seu macacão.
- Vai almoçar! - berrou novamente perdendo a paciência e apontando para a direção da casa.
A caçula saiu correndo deixando seu cabelo amarrado na lateral do rosto balançar, tirou o que havia no bolso do macacão e abraçou fortemente contra o peito. Célia, a passos bruscos, firmando os pés na terra, foi atrás da irmã."
Acabou de ler a carta e se sentou em sua cama. Aquela onda que irrompera em seu cérebro a deixara exausta. Sentiu novamente a culpa tomar conta de si.
Se não fosse por mim, tudo poderia estar melhor. Eu poderia ter impedido tanta coisa...
Estava fraca, o corpo cambaleante. Com as forças que ainda tinha se levantou indo em direção a gaveta ainda aberta. Guardou a carta no envelope e a escondeu novamente no fundo da bagunça. Secou o rosto molhado das lágrimas que não segurou.
Desistiu de procurar algo relacionado a sua neta. Não queria encontrar mais artefatos antigos que lhe arremessassem o passado. Pegou seu terço e ajoelhou em frente a cama, focou o olhar na cruz de madeira sobre a cabeceira dessa. Fez o sinal da cruz. Cerrou os olhos, e silenciosamente começou sua oração.
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Vamos Brincar, Kat?
Horror- Filha... Com quem você está falando? - Com o Teddy, mamãe. Um tilintar de xícaras ecoa no quarto. - E sobre o que vocês estão falando? - Sobre a garota no final do corredor. Acho que ela quer brincar de comidinha co...