Capítulo 45 - 2/2

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"Como nossa família vivia em uma fazenda, doze quilômetros distante da cidade mais próxima, eu não tinha amigos que constantemente brincavam comigo. Eu tentava me aproximar das minhas irmãs, mas Cél e Betty eram mais velhas e não tinham paciência para mim. Então a maior parte do tempo eu passava explorando a mata ao redor de nossa fazenda sozinha.

"Um dia eu adentrei muito. Cheguei a lugares que eu nunca tinha ido, mas não estava preocupada se saberia voltar depois para a fazenda. A Cél tinha brigado muito comigo aquele dia, e eu fiquei muito triste. Eu, na verdade, não queria voltar para casa. Estava perdida em pensamentos e afastando o choro aos poucos quando ouvi um assobio. À primeira vista eu fiquei com medo, porque achava que estava sozinha ali. Eu achei que tinha chegado na fazenda de outra pessoa e eles queriam saber o que eu estava fazendo ali. Por um instante eu fiquei parada pensando em correr de volta, mas, na mesma direção que veio o assobio, uma voz me chamou: 'Ei, menina!'

"Olhei ao meu redor e não enxergava nada. Estava com muito medo. Senti meu coração acelerar como nunca havia sentido. A voz insistiu 'Chega aqui, menina, não precisa ficar com medo. Eu só quero conversar.' Não sabia se ia ou não, mas acabei cedendo pra minha curiosidade. Queria saber quem estava ali. Quem sabe poderia ser outra criança para brincar comigo. Eu me sentia muito sozinha, qualquer pessoa com quem eu pudesse conversar naquele momento seria melhor do que nada.

"Fui me aproximando até chegar a uma pequena clareira aberta ali na floresta. Havia um monte de galhos empilhados e chamuscados. Resquícios de uma fogueira apagada. Penas vermelhas, amarelas e pretas estavam jogadas por ali também. Fora dali que a voz viera, eu sabia que fora. No entanto não tinha ninguém. Na verdade, eu não tinha o visto atrás da fogueira, escondido, se esgueirando para me ver. Ele disse 'oi' e então eu vi sua orelha peluda e seus olhos de vidro marrom.

"Confesso que gritei assustada. Era um urso de pelúcia falando comigo, eu só poderia estar doida da cabeça. Tentei correr, mas meus pés se rejeitavam a obedecer. Ele saiu de trás da fogueira e se aproximou de mim, tentando me acalmar. Foi difícil assimilar que era verdade aquele urso falando comigo, mas após uns dez minutos eu começava a gostar da ideia de ter ele para conversar. Ele me disse que as pessoas o chamavam de Teddy e que a última criança com quem ele brincara o largara ali. Ele realmente parecia triste.

"Levei ele pra casa escondido no bolso da barriga de meu macacão. Eu tinha doze anos e não queria que Cél e Betty rissem ao me ver brincando com um urso de pelúcia. Elas iriam me chamar de criancinha. Iriam gargalhar enquanto apontavam seus dedos para mim. O Teddy estava um pouco rasgado, então pedi para mamãe costurar ele e não contar da existência dele para minhas irmãs. Ele ficou perfeito após o reparo.

"A partir daquele dia, nós conversamos todos os dias. Estava no período de férias quando o encontrei, então tinha todo o tempo para conversar com ele... fora de casa. Eu normalmente entrava na floresta, mas ele não gostava muito. Disse que tinha medo da criança má o encontrar de novo. Então a gente ficava conversando próximo a um barranco. Era lindo ali, via diferentes tipos de pássaros e sonhava acordada em estar no meio deles.

"Aos poucos, Teddy foi ganhando minha confiança. Eu sentia que podia confiar nele e lhe contei meu sonho. A única pessoa a quem eu confiei meu sonho e me apoiou. Ele dizia que eu poderia voar, ele confiava em mim como ninguém nunca confiara. Era ótimo ter alguém me apoiando. Passávamos a tarde inteira apreciando os pássaros e ele dizia que um dia iria me ajudar a voar. Eu mal podia esperar aquele dia chegar.

"Infelizmente, o dia chegou. Antes de eu ir jantar, ele me disse que precisava conversar comigo à noite. Nós nunca conversávamos durante a noite. Eu era obrigada a ficar em casa e minhas irmãs iriam ouvir eu conversando com ele, e então iriam rir de mim. Eu não queria aquilo, no entanto àquela altura eu já confiava muito nele, e achei que não teria problema algum se conversássemos.

"Fomos para o meu quarto e ele pediu para eu escrever uma carta. Eu não entendi muito bem o porquê de início. Confesso que fiquei bem assustada. Era uma carta de despedida para Cél e Betty. Dizia tudo o que eu queria dizer para elas, mas nunca tive coragem. Teddy disse que naquela noite iríamos voar para bem longe, para o lugar onde os pássaros sempre voam. Eu fiquei muito animada e triste ao mesmo tempo. Queria muito voar, mas não queria largar a mamãe, o papai, e, surpreendentemente, não queria largar minhas irmãs. Apesar delas brigarem muito comigo, eu as amava muito. 

"Terminei a carta e deixei debaixo do meu travesseiro, enquanto fingi que dormia. Ele disse para meia noite eu sair de casa e subir no telhado pela escada que o papai usava para chegar na caixa d'água. A carta eu deixaria debaixo da porta do quarto das duas. Eu apenas concordei. Quando o relógio cuco que ficava na cozinha bateu às 12 horas da madrugada, fomos nós dois em completo silêncio e sem fazer barulho.

"Cheguei no topo do telhado, era um pouco difícil de se equilibrar ali. A noite era fria e parecia cortar minha pele com as rajadas de vento que me percorriam. Eu vesti meu macacão jeans, não queria voar por muito lugares vestindo um pijama. Teddy disse que eu precisava apenas confiar em mim, que era melhor eu fechar os olhos quando eu pulasse para sentir o vento me carregar. Eu estava cega e acreditei fielmente nele. Meu coração estava disparado e a respiração ofegante em misto de medo, ansiedade e expectativas mil. Por duas vezes eu ameacei pular, mas não fui. Teddy contou, então, até três e eu me joguei do telhado. Fechei os olhos e abri os braços. Por uma fração de segundo, me senti livre, senti que poderia voar para qualquer lugar. No instante seguinte, o pavor me dominou. Meu corpo não subia junto ao vento, seguia de encontro ao chão. Abri meu olhos enquanto gritava desesperada e pude ver de relance, com a luz da lua, uma faca fincada na terra me esperando. A última coisa que senti foi aquela lâmina limpa, penetrar minha barriga e se sujar de um vermelho vinho.

Mel fez uma pausa e se sentou aos pés da cama de Dona Célia. Sarah e Kat estavam assustadas, com medo da verdade lhes arremessada. O brinquedo que fora sendo passado de geração em geração era quem permeava as aparições da tia-avó de Kat. A garota da faca apenas as tentava proteger do urso de pelúcia. Aquela narração tocou a mente de todas como uma bomba atômica se explodindo e afetando de maneira absurda a percepção de mundo de todas. Os resquícios ficariam ali permanentemente.

Irrompendo, então, a confusão estabelecida naquele quarto de hospital, o telefone de Sarah começou a tocar.

Vamos Brincar, Kat?Où les histoires vivent. Découvrez maintenant