XXXII - Visões - Silena

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Silena enxugou o suor da testa enquanto olhava para a fila de moradores que ainda contava com cerca de trinta pessoas.

— Pronto. — Disse ao recolocar o ombro de uma mulher no lugar. — Está se sentindo melhor?

— Sim... — Respondeu ela rotacionando o membro. — Sim, sim, muito obrigada.

Silena apenas respondeu com um aceno de cabeça e esperou que o próximo viesse para oferecer sua ajuda. Quando finalmente todos haviam sido atendidos, a guardiã sentia seu corpo exausto e uma forte dor de cabeça que não conseguia amenizar com seus poderes.

Saiu do centro da vila acompanhada por Jhago que prometera lhe dar alguns suprimentos para que ela e Borotraz (que se recusava a entrar no meio das pessoas) continuassem seu caminho. O homem explicava que não poderiam fornecer tanta carne, já que não tinham tantos animais ali, porém, por outro lado, Silena precisou pedir que diminuísse a quantidade de pães que lhe deram, pois a possibilidade de não conseguir comer tudo a tempo antes que estragasse era bem alta.

— E seu pai? — Questionou ela, relembrando que Jhago dissera que havia voltado para lá por causa de uma doença do parente.

— Ele não resistiu muito depois que cheguei. — Declarou o homem, fazendo com que a guardiã observasse melhor a idade dele e concluindo que seu pai estaria realmente muito velho naquele momento e talvez não pudesse ajudá-lo, assim como não iria conseguir ajudar o seu próprio...

Limpou o pensamento coçando a garganta e mudando o assunto:

— Estou errada em julgar que só me aceitou aqui por ser uma guardiã da cura?

— Não. — Respondeu Jhago secamente. — Como já disse: Precisávamos de ajuda para nossos doentes e feridos. Aliás, obrigado pelos ensinamentos que deu.

Silena respondeu com um aceno lembrando dos casos em que, ao invés de usar seu poder para curar os moradores, preferiu identificar o problema e instruir a melhor forma de tratá-lo no modo convencional.

— E se meu domínio fosse outro? — Perguntou tensa com a resposta. — O que você faria?

— Eu diria que fosse embora e tomasse mais cuidado. — Respondeu ele e então encarou a garota enquanto andavam. — Afinal, não é todo lugar que você vai encontrar um nakoushinider desertado.

Silena baixou os olhos sem saber o que responder.

— Pode ser difícil de acreditar, — completou ele — mas nem todos nós humanos nos importamos com quanto tempo vocês vivem.

— E com o que você se importa? Digo... Imagino que tivera um motivo para se juntar a eles.

A garota viu a tristeza imediatamente tomar conta do rosto do homem.

— Dizem que os ovos de dragões nascem quando seus companheiros mais precisam deles, certo? — A voz dele falhou. — Bom... Famílias com linhagem de guardiões costumam envelhecer minimamente mais devagar, mas em cidades como essa, a idade não é a única dificuldade... O que você acha que acontece com uma criança guardiã quando ela perde os pais para algo que teria sido simples se eles tivessem envelhecido na mesma velocidade que ela, mas que no momento eles já estão velhos demais e ela não?

Silena não respondeu.

— Minha raiva contra seres mágicos nunca foi por vocês terem a habilidade de viver mais, mas sim por abandonarem aqueles que são iguais a vocês mesmo sabendo que eles não vão ter o amparo necessário sozinhos... — Ele ficou em silêncio encarando o chão por alguns segundos. — Se seu povo não fosse irresponsável, eu não teria perdido meus dois melhores amigos na mesma noite...

A guardiã podia sentir a tristeza exalando de Jhago e tinha quase certeza que vira uma lágrima escorrer de seu olho. Porém, não teve tempo de tentar consolá-lo, já que rapidamente ele respirou fundo e recuperou o tom de antes.

— Mas isso não cabe a você, não é? Pela sua idade, não foi você que decidiu se isolar deixando o resto do mundo ao acaso, foi?

Feliz ou infelizmente, a garota não precisou responder ao homem, já que avistou o velho, cuja casa havia invadido, e correu para lhe pedir desculpas.

— Você me assustou bastante, garota. — Declarou ele. — Não posso negar.

— Novamente, lamento todo e qualquer tormento que causei.

— Tanto faz. — Respondeu o homem chamado Rendal e voltou a andar na direção que ia antes de Silena o parar.

A guardiã da cura uniu as sobrancelhas pensando o motivo daquela indiferença, o qual foi esclarecido por Jhago:

— Rendal era um grande guerreiro na juventude, mas agora está mais para um velho habilidoso que tenta convencer os jovens que treinar espada é melhor do que aprender sobre as plantações...

— E as pessoas concordam com isso?

— Não. — Disse Jhago ainda olhando o velho se afastar a passos rápidos. — Mas é o que lhe restou, então...

Os dois continuaram a caminhar até as casas voltarem a se espaçar na direção que Silena sabia que Borotraz estaria escondido entre as plantas. Quando estavam suficientemente afastados de ouvidos e olhos, o dragão apareceu para os dois em posição de receio e atento aos movimentos do estranho.

Se isso não é "se arriscar demais". Então eu não sei o que é... Declarou o companheiro em sua mente.

A guardiã revirou os olhos indo para o lado de Borotraz e ficando frente a frente com Jhago.

— Obrigada por tudo. — Disse a garota.

— Nós que agradecemos. — Respondeu ele cruzando os braços. — Mas me desculpe, precisamos de mais do que a ajuda que já nos deu em troca.

Silena uniu as sobrancelhas assustada com o que o homem faria em seguida. Centenas de possibilidades passaram pela sua cabeça e ficou pronta para lançar novamente a magia que tirava a consciência das pessoas.

— Não sei para onde pretende ir — começou ele, — mas caso esteja indo de encontro a essa tal guerra que estão planejando desde que eu entrei para os nakoushiniders... Por favor, faça algo para nos deixar fora disso.

A garota tombou a cabeça de lado ao ouvir algo que não esperava.

— Não sei se entendi completamente o que quer dizer. — Declarou.

— Eu quero dizer que, como você viu, nós não temos nada a ver com tudo isso. — A guardiã não sabia dizer se o tom do homem era uma tentativa de parecer mais imponente ou uma falha em manter a calma. — Um dos maiores argumentos deles é a destruição que vocês causaram durante a Guerra das Sete Noites, porém quase ninguém se lembra disso. Claro, muitos vivem as consequências, mas se começarem outra guerra não vai ser de grande ajuda!

Jhago desviou o olhar para o chão.

— Então, por favor, se tiver a oportunidade, diga a eles para deixar o povo fora disso. Essa não é uma luta nossa, de pessoas comuns... Não deixe que soframos com as consequências mais uma vez.

A guardiã respondeu apenas com um aceno e se virou para rumar novamente para o sudeste. Andaram pouco antes de pararem para se alimentarem e Borotraz continuava sem falar com a garota como forma de expressar sua insatisfação com as atitudes dela.

Independente de quanto andassem, não conseguia tirar as palavras de Jhago da sua cabeça. Porém, estavam muito perto de chegar na Floresta de Vingüeval, até onde sabia. Então, precisaria dizer a frase quando chegasse lá e estaria bem de novo...

A quem pretendo enganar? Nem sei onde estou entrando... Quem vou encontrar... O que vai acontecer...

Olhou para o nada e suspirou.

Só vamos ver o que acontece...

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