Prólogo - Início de Bacanal

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Eu teria perdoado a sua vaidade se ela não houvesse ferido a minha.

— Jane Austen, "Orgulho e Preconceito"

— Sete séculos e meio atrás —

O orgulho de Apolo não cabia dentro do seu peito.

Ele bebeu o ar sonoramente, deixando um sorriso largo exibir os dentes compridos e brancos. Seus cabelos longos e dourados como ouro polido dançavam majestosamente em torno do rosto belo e bronzeado ao sabor da brisa quente. A luz do sol brilhava em sua pele.

Estava no topo de uma colina na base do Olimpo. Viera até ali para se afastar um pouco da balburdia massiva que o rodeava sem trégua por toda a última semana. Era um ato de falsa modéstia. Ele não assumiria publicamente, mas sorveu cada elogio, gratificação, congratulação, tapa nas costas e beijo na face que lhe davam sem reservas. Os homens adoram os deuses, os deuses adoram heróis. E ele era um deles.

O mundo estava cheio de monstros, cada qual com sua trilha de cadáveres e seus rivais. Mas havia um em especial que vinha aterrorizando mortais e imortais: a Serpente Maligna, a Cobra Monstruosa, a Devoradora de Homens – A Píton.

Sendo um dos bastardos de Zeus, Apolo sofrera na mão de Hera mesmo antes de nascer. Além de amaldiçoar sua mãe, Leto, e impedi-la de conseguir abrigo para o parto em qualquer lugar da terra, a rainha dos deuses ainda colocou o monstro reptiliano ao seu encalço. O jovem deus ainda não podia nem imaginar labuta dolorosa da mãe, grávida e sozinha, sem que as fibras do seu ser vibrassem de fúria. Contra a deusa, nada podia fazer, mas desde que segurou um arco pela primeira vez, soube que seria ele quem mataria a fera.

Que um raio de Zeus o acertasse na cabeça se ele ousasse dizer que fora fácil. Perdera a conta dos anos que passou se fortalecendo, correndo até a fadiga extrema, treinando até sangrar os dedos, se forçando até o limite. Ninguém lhe pedira para fazer isso. Ninguém iria ajuda-lo. Ele não tinha nada além da própria vontade e do ódio mais puro. Mas ele conseguiu.

Perseguiu o monstro até a sua toca, cheirando a veneno e corpos putrefatos. Instigou a sua ira e lutou. Lutou como um titã em fúria. No fim de três dias de justa, a Píton tinha uma fecha no olho, uma na boca e outra no peito do corpo escamoso, frio e morto. E um Apolo fadigado, ralado, mas ileso, voltara vitorioso para casa.

Ah, o orgulho agradecido nos olhos da mãe aquecera seu coração cansado. Sua irmã, tão corajosa e dura, beijou-lhe o rosto com lágrimas nos olhos. Encontrou a paz naquele dia, mas logo então vieram os outros. Filas de deuses, grandes e pequenos, exaltaram sua vitória, exageraram seus feitos, bajularam sua pessoa, e incharam seu jovem ego. Sim, o que ele fizera fora épico, afinal. Quantos deles tinham a resiliência e dureza necessárias para suportar aquela labuta? Quantos marcharam sozinhos e regressaram? Quantos haviam sobrepujado monstruosidades tão poderosas e voltado incólumes? Um? Dois? Nenhum?

Pois que o adulassem por anos. Ele merecia.

No meio desses pensamentos, ainda com um sorriso vaidoso no rosto, Apolo ouviu um ruído seco e elástico que ele reconheceria a quilômetros de distância; o de um arco sendo retesado. Seguindo a origem do barulho com a cabeça, girou a tempo de ver o arqueiro soltando a flecha. Metros abaixo dele, num declive plano, Eros treinava a pontaria.

Apolo encarou o jovem deus do Amor e seu primeiro pensamento foi se perguntar o que aquele pirralho estava fazendo ali.

O rapaz puxou outra flecha da aljava e a encaixou na corda do arco curvo e lânguido, distraidamente. Um vento repentino jogou uma mexa solta do seu cabelo quase liso contra seu rosto delicado, mas ele não se moveu com o incomodo, apenas soprou suavemente a melena loura e com uma graça felina, disparou a segunda flecha. Numa trilha reta e ligeira, ela encontrou o mesmo destino da primeira.

BacanalWhere stories live. Discover now