Capítulo XXVI - Peixe Branco

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Eu quero esquecer você
Eu quero te fragmentar
Em partes que eu possa perder
Que eu nunca mais possa encontrar

Eu quero macular teu lar
Eu vou sacrificar você
Diante desse mesmo altar
Que eu fiz para te receber

— Anna Muller, "Fragmentar"

A primeira coisa que sentiu foi nada.

Parecia uma contradição tão inescapável quanto ouvir o próprio silêncio, mas era o que ele experimentava agora: um vazio oco e escuro, como estar acordado num sono sem sonhos. Não sentia dor nem sentia o próprio corpo. Não sabia sequer estar de olhos abertos ou fechados porque tudo o que via era um manto preto e borrado. Depois sentiu frio, dormente e dolorido, dando a impressão que seu coração houvesse esquecido de bater por muito tempo e isso tivesse esfriado seu sangue, fazendo com que tremesse de dentro para fora, e soube que cobertor ou fogo nenhum o esquentaria.

Foi nesse momento que começou a ter medo.

Aos poucos, alguns pontos de luz confusos surgiram na sua vista e percebeu estar sim abrindo os olhos. Sentiu uma sede absurda e ouviu os próprios dentes batendo, embora por baixo disso uma voz suave e baixa como o lodo no fundo de um rio gelado se fizesse ouvir:

— Você acordou, Cupido? — Eros conhecia aquela voz.

E isso lhe deu mais medo.

— Ótimo, o que está sentindo? — a voz questionou, parecendo completamente incoerente com o contexto.

Eros forçou a língua pesada e seca contra o céu da boca muitas vezes antes de conseguir pronunciar, de uma maneira débil e tremida:

— Frio...

— Hm, interessante... — o outro sussurrou, como se fizesse uma nota mental, contendo algo próximo a excitação.

— Morfeu... — Eros murmurou, finalmente conseguindo discerni-lo a sua frente, embora tudo ainda fosse muito confuso e ele mesmo estivesse no fundo de um rio onde a luz do sol não chega mais. — O que... onde...?

— Eis a questão: — ele disse, o ignorando completamente. — a ideia inicial era criar uma droga que simulasse os efeitos de uma paralisia do sono, porque... — o deus dos sonhos sorriu. — Você sabe como eu amo paralisias do sono...

— Morfeu... o que é... isso?

— Porém, acabou se parecendo muito mais com algum tipo de anestésico geral. — ele ponderou, mordendo a argola do lábios. — O ópio é imprevisível qualquer maneira...

— O que está acontecendo? — Eros piou, começando a entrar em pânico.

— De qualquer forma ainda é algo do que se orgulhar, acha que se eu nomeá-la de "Morfina" soará muito narcisista?

— Por que estamos aqui?! — Eros exprimiu, colocando o máximo de força que tinha sua voz, o que não foi muito, quase o piado lamentável de uma criatura moribunda.

Porém, Morfeu finalmente pareceu ouvi-lo, fixando os olhos coloridos nos seus. Quase se arrependeu porque, o que viu ali, o fez tremer mais que qualquer frio.

— Você está aqui para ser punido e eu estou aqui para punir você.

Se Eros tinha alguma dúvida sobre estar ou não ferrado, ela desapareceu naquele momento.

Tentou arduamente se mover, mas tudo o que conseguiu foi sacolejar um jeito estranho. Ainda não sentia nada das pernas ou dos braços, mas já conseguia enxergar melhor o lugar a sua volta. Estava num quarto completamente desconhecido, sem janelas ou decoração, parecendo mais uma espécie de masmorra. Levou um momento para que percebesse estar com ambos os pulso presos acima da cabeça, em correntes que se atavam no teto, esticando seus braços ao máximo, de modo desconfortável e cruel, que certamente lhe causaria o suprassumo da dor quando a morfina sumisse do seu sangue. Já seus joelhos estavam dobrados sobre uma cama grande e escura, as pernas inertes e meio nuas pelo corte diminuto da túnica que escolhera pela manhã, parecendo peças soltas de uma estátua quebrada. Eros parecia-se todo com uma estátua de mármore quebrada e tremulante, e temia cada vez mais que esse fosse o destino que o outro lhe tinha escolhido.

BacanalWhere stories live. Discover now