Capítulo XIX - Como Somos Violentos

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Eu sou um erro imprudente
Eu sou a entrada de uma noite fria
Eu sou um uma noite muito longa
Eu sou agressivo e assertivo

Eu sou instável
Eu sou a cor de um estrondo
Que nunca chega até você
Você é como uma ópera
Sempre sincronizado e no tom certo
E eu sou a cor de um estrondo

— Imagine Dragons, "Polaroid"

Apolo já havia acordado de muitas maneiras nos seus mais de novecentos anos de vida: já acordara sufocando, já acordara chorando, já acordara sozinho. Nem tudo em sua existência havia sido obrigatoriamente trágico e dolorido e ele também já tinha acordado sendo beijado, abraçado, agradado, aprazido.

Mas nunca, jamais, havia acordado sendo lambido.

O deus do sol abriu os olhos, arregalando as pálpebras em torno das íris azuis, tirado do mundo de Hipnos num rompante inesperado ao sentir uma língua larga e incrivelmente áspera esfoliando a pele da sua bochecha direita, num movimento lento e molhado. Virando-se assustado para aquele lado da cama, esperando ele não sabia o que, quando caiu dentro de um par de pupilas fendidas e orbes cinza-azulados.

— Floquinho? — o deus exclamou surpreso, vendo o felino piscar para ele de pé ao lado da cama.

Aquilo deve ter parecido um incentivo irresistível, pois o leopardo pôs-se a lamber seu rosto inteiro.

— Ah, não... não, não... garoto, calma... — Apolo pediu, saindo daquele carinho molhado ao sentar-se na cama, limpando a face com as mãos.

Floquinho estava tão ridiculamente feliz que parecia um cachorrinho, balançando a cauda listrada e quase dando voltas em si mesmo. Por fim, ergueu-se brevemente sobre as patas traseiras, colocando a parte de cima do corpo forte e peludo na cama, deitando a cabeça atrevidamente no colo coberto de lençóis do deus do sol.

Apolo ergueu as sobrancelhas, muito surpreso, mas inexplicavelmente feliz, acarinhando os pelos escuros atrás das orelhas do felino sem hesitação, fazendo-o ronronar em cima dele.

— Bom dia, Floquinho... — ele murmurou para o leopardo, que tinha os olhos fechados no seu colo, agora bamboleando o rabo comprido lenta e preguiçosamente. — De onde você veio? — Apolo perguntou, ao lançar um olhar rápido para a porta do quarto e notá-la ainda fechada, corando levemente ao considerar a hipótese do animal ter estado ali o tempo todo. Afinal, tinha de assumir para si mesmo: na noite anterior, as moiras poderiam ter dançado nuas em volta da cama madrugada a fora que ele nunca teria percebido.

A resposta do leopardo foi levantar a cabeça de rompante e lamber os dedos que lhe faziam carinho, depois voltar todo o corpo para o chão. Apolo o acompanhou com os olhos enquanto o felino dava a volta animadamente na cama, dessa vez subindo parcialmente no lado esquerdo, onde Dionísio ainda dormia.

Apolo deixou seus olhos descansarem no menino. Ele repousava da mesma maneira doce e silenciosa que no Palácio da Luz: uma mão sob a bochecha, o polegar pequeno contra o lábio inferior; os lençóis, agora purpúreos, enrolados em volta dos quadris; a respiração morna vagueando muda pela boca entreaberta.

Apolo sorriu sem nem perceber, entremeando os dedos longos nos cachos meio desfeitos e desalinhando dele, num carinho lento e muito suave, delicado demais para despertá-lo. Apenas sentir a maciez dos seus cabelos entre os dígitos lhe trazia uma felicidade pura e irracional demais para medir com suas belas palavras.

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