Capítulo I - Semântica

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  Conte-me seus segredos,
Faça-me suas perguntas.
Oh, vamos voltar para o começo.
Correndo em círculos, lançando a moeda,
De cara numa ciência à parte.

— Coldplay, "The Scientist"


— Muito bem, sejamos todos devidamente razoáveis e racionais, e vamos admitir que... EU NUNCA VOU CONSEGUIR FAZER ESSA PORCARIA! — Eros gritou, quase arrancando as ondas claras e compridas de frustação, fazendo Dionísio rolar de rir em cima do divã de onde assistia a cena e Apolo revirar os olhos teatralmente.

— Não seja tão dramático, vai ter rugas. — o Sol disse, impelindo Eros a passar os dedos pela pele, irracionalmente perfeita do seu rosto irracionalmente perfeito, fingindo chorar copiosamente.

— Rugas, não... — ele lastimou entre os dedos finos.

— Tente de novo. — Apolo ordenou, ignorando aquele escândalo.

— E de que adianta? — o Cupido questionou, decidido a prolongar aquela birra. — Estamos nisso há horas! E tudo o que eu consegui foi suar, quase matar Dionísio de rir e um par de pés de galinha! — ele resmungou, alisando as linhas imaginárias no canto dos olhos pretos.

— Ah, que Atena me dê sabedoria... — Apolo resmungou. — Essas coisas não se aprendem instantaneamente. Precisam de treino e foco! — ele disse, austeramente, causando em Eros um bico gigantesco. Estendendo, então, o braço direito ao lado do corpo, dezenas de faíscas começaram a rodopiar freneticamente perto dos seus dedos, e seu longo e belo arco dourado surgiu na sua mão. — Treino e foco. — ele repediu, fazendo a arma tornar a desaparecer instantaneamente, sem ao menos olhar na sua direção.

— Exibido... — O Amor murmurou, ainda apertando os lábios, aborrecido.

— De novo. — Apolo repetiu, naquele tom másculo e mandão. Muito difícil de não obedecer.

Deuses, se ele for assim na cama... Eros devaneou por um instante, mordendo os lábios cheios. Esse era um dos seus maiores problemas naquele exercício. Ele não conseguia não devanear, principalmente com louros estonteantes e morenos irresistíveis por perto. Ora, vamos... Ele ralou com sigo mesmo, ficando na posição que fora ensinado, o corpo ereto e sólido, o braço esticado, no seu caso visto que era canhoto, do lado esquerdo ...Se esforce

Apesar dos modos autoritários e exigentes, Apolo estava sendo incrivelmente didático e paciente com ele. Não queria frustrá-lo com a sua incompetência. Não depois de ganhar o seu respeito em batalha, há meses atrás, seria terrivelmente decepcionante. Por isso obrigou-se a escutar atentamente as palavras calmas e ordenadas na voz grave e musical do deus do sol, fechando os olhos obedientemente.

— Limpe sua mente. — ele ouviu. — Deixe seus pensamentos quietos e serenos. Acalme suas emoções... — E como é que eu faço isso? Eros se perguntou, beirando o desespero. Ele não tinha a menor ideia de como silenciar a sua cabeça, nunca soube como ignorar seus sentimentos. Quando Apolo o mandava não pensar nem sentir, para ele daria no mesmo se dissesse para fazer seu coração parar de bater com a força da mente. — Tire tudo o que não for necessário do seu raciocínio, e concentre-se em apenas uma imagem: — o deus do sol continuou. — A imagem do seu arco. Foque-se nele. Pense no tom exato da cor do seu metal. Do peso dele na sua mão. Da forma dele nos dedos. — a voz melódica dizia. — Você sabe onde ele está. – E de fato sabia. Estava sobre uma poltrona azul-celeste na sala ao lado. Apolo tinha optado por começar de um modo mais fácil, com o instrumento próximo, e uma imagem mental clara da sua localização. E mesmo assim, depois de três horas de exercício, Eros não tinha conseguido sequer algumas faíscas, o que estava começando a preocupar o deus do sol. Por mais que tivesse insistido que era algo relativamente difícil e necessitava de prática, ele já devia ter conseguido pelo menos uma vez. A maioria dos deuses fazia aquilo quase que por instinto e ele não se lembrava de ser nem de longe tão difícil de aprender. — Chame-o. — ordenou, por fim, vendo uma linha de concentração se formar entre as sobrancelhas arqueadas e platinadas do Cupido. — Chame-o para você...

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